Discos eternos – Galos de Briga (1976)

joaoRIO DE JANEIRO – Existem artistas, músicas e discos que entram na vida da gente sem explicação e não saem mais – igualmente sem que se explique o motivo.

Trago de volta a seção Discos eternos para falar de um artista, de algumas músicas e de um disco que eu guardei para sempre na memória. Cortesia do mineiro de Ponte Nova João Bosco e seu Galos de Briga.

E como pode um disco editado em 1976, quando o blogueiro tinha apenas cinco anos de idade, chamar tanto a atenção de uma criança a ponto de, já adulto, perseguir um exemplar em Compact Disc nas lojas e adquiri-lo?

Existe o fascínio pela capa, é claro. O vermelho-sangue de fundo, um olho solitário, São Jorge impondo-se sobre um dragão e, em primeiro plano, uma pata de galo com esporas de rinha, remetendo ao título do LP.

Bosco, cuja carreira de cantor, compositor e violonista começou após um rápido flerte enquanto habitante de Ponte Nova com o iê-iê-iê da Jovem Guarda e em paralelo com o curso de Engenharia Civil que estudou em Ouro Preto, lançava em 76 seu terceiro trabalho, sem contar o disco “de bolso” que O Pasquim lançara quatro anos antes com “Agnus Sei”. Naquele mesmo ano, Elis Regina deu impulso à carreira de João ao cantar “Bala Com Bala” e o maravilhoso bolero “Dois pra lá, dois pra cá”, com letra de um tijucano de ideias brilhantes e afiadas: Aldir Blanc.

A parceria Bosco-Blanc foi uma das mais profícuas da música brasileira nos anos 70 e, embora segundo João, tenha se desgastado a ponto de provocar o fim da dupla enquanto compositores, tal como já acontecera por exemplo com Raul Seixas e Paulo Coelho, ficaram para a história as grandes canções que os dois compuseram.

Galos de Briga, disco produzido por Rildo Hora e que teve arranjos de Luizinho Eça (Radamés Gnattali trabalhou somente com a última música), além de uma retaguarda de primeiríssima qualidade com Toninho Horta (guitarras/violões), Luizão Maia (baixo), Paschoal Meirelles (bateria) e Dom Chacal (percussão), não foge à exceção dos trabalhos da dupla com composições que são polaroides do cotidiano do carioca nos anos 70. O disco começa com “Gol Anulado”, de citações futebolísticas (Quando você gritou ‘Mengo!’ no segundo gol do Zico / tirei sem pensar o cinto / e bati até cansar / três anos vivendo juntos / e eu sempre disse contente / minha preta é uma rainha / porque não teme o batente / se garante na cozinha / e ainda é Vasco doente), referências explícitas aos times de coração de João Bosco, rubro-negro de primeira hora e Aldir Blanc, vascaíno de boa cepa. Mas os dois extrapolam na comparação no verso final da canção (Eu aprendi que a alegria / de quem está apaixonado / é como a falsa euforia / de um gol anulado), fazendo a antítese de uma paixão com aquele gol que o artilheiro marca, mas não vale.

“Incompatibilidade de gênios”, clássico da dupla, volta com citações boleiras (Dotô / jogava o Flamengo e eu queria escutar / chegou / mudou de estação e começou a cantar) e uma narrativa muito bem-humorada das desventuras de um sujeito notadamente mal-casado, que deseja se livrar da mulher e tem seu desejo atendido quando ganha no jogo do bicho (E deu na cabeça / acertei no milhar / ai! quero me separar!).

A terceira faixa é o belíssimo bolero “O cavaleiro e os moinhos”, com direito à cama percussiva de Chico Batera e letra inspirada de Aldir Blanc que diz que ‘já não há mais moinhos como os de antigamente’. A carga latina se acentua em “Rumbando”, com inspiração nos clássicos caribenhos como os de Tito Puente e direito a uma interessante aliteração (O rumo da rumba / um bumbo, uma tumba / o rombo e o tombo – mas nasceu para bailar!), revelando a veia bem-humorada das letras de Aldir Blanc, que chega ao lirismo total em “Vida Noturna”, quinta e sofrida faixa do disco.

Em “O ronco da cuíca”, voltam as citações cotidianas numa música com empolgante introdução à la bateria de escola de samba, com Blanc desfilando um sem-fim de ironias, recados diretos à ditadura que reinava soberana no Brasil de 1976 e que a censura, talvez ocupada com outras coisas naqueles tempos, não teve competência ou capacidade de proibir. (A raiva dá pra parar pra interromper / a fome não dá pra interromper / a raiva e a fome é coisa dos ‘home’ / a fome tem que ter raiva pra interromper / a raiva é a fome de interromper / a fome e a raiva é coisa dos ‘home’ / é coisa dos ‘home’ / a raiva e a fome / mexeu com a cuíca / vai ter que roncar!)

Que tal substituir instrumento cuíca e colocar a palavra como sendo o trabalhador, o povo brasileiro?

O lado B (sim, discos nos anos 70 tinham um lado B) abre com o bolerão “Miss Suéter”, de participação especialíssima da Sapoti Ângela Maria e com letra que, lá em casa, era cantada a plenos pulmões pelo meu pai. Explico: quando ele e minha mãe se conheceram, lá pelos idos de 1962, ela tinha o cabelo levemente tingido de loiro. E como a letra diz que a personagem da canção tem “fascínio por falsas loiras”, apaixonadamente ele tocava a música, várias vezes. Nunca esqueci disso.

A música que mais gosto é a segunda do lado B, o bolero “Latin Lover”, com os versos que entraram para a história da parceria: Nos dissemos / que o começo é sempre sempre inesquecível / e no entanto meu amor / que coisa incrível / esqueci nosso começo inesquecível. O amante latino que morre sem revólver, sem ciúme, sem remédio e de tédio, dá vez ao fado “Galos de briga”, de lindíssimo arranjo de violões com os músicos Manoel Ferreira, Leonel Villar e Carlos Silva e Souza em perfeita sintonia com o baixo de Wagner Dias e os pratos e castanholas do percussionista Barão.

Cristas de incêndio crispadas
Cristas do fogo de espadas
Cristas de luz suicida
Lúcidas de sangue e futuro

Cristas crismadas em rubro
Não rubro rosa assustada
De rosa estufa, canteiro
Mas rubro vinho, maduro

Rubro capa, brandarilha
Rosa atirada ao toureiro

Não, o rubrancor da vergonha
Mas os rubros de ataduras
O rubro das brigas duras
Dos galos de fogo puro

Rubro gengivas de ódio
Antes das manchas no muro

Em “Feminismo no Estácio”, Bosco e Blanc deixam de lado uma certa apologia machista das duas primeiras faixas, de uma submissão feminina ante o macho-alfa para exaltar que a “nêga sem modos” da letra é “maior e vacinada”. E independente do marido, amante ou que quer que seja, para fazer o que lhe desse na telha.

Com participação de Toots Thielemans, o brilhante gaitista internacional, “Transversal do tempo”, a penúltima música, acabaria conhecida como o título de um dos mais belos espetáculos daqueles tempos – não com João Bosco, mas sim por Elis Regina, que como eu disse anteriormente, gravou – e gravaria até o fim da vida – músicas da dupla.

O disco encerra com a marcha-rancho “O rancho da goiabada” e não me perguntem como e por que era a minha música predileta (quando criança, é claro) das 12 de Galos de Briga, principalmente porque eu não gosto de goiabada cascão com muito queijo, nem de café com cigarro e de bife à cavalo. Sei lá… acho que é porque a música era gostosa de se ouvir e para mim, que era criança quando ouvia e adorava o disco, tema e letra eram irrelevantes.

Enfim, muito pelo gosto pessoal, menos por sua absoluta relevância na MPB, coloquei Galos de Briga como um disco fundamental e bom para ser apreciado. João Bosco e Aldir Blanc merecem, sim, um lugar de destaque na música nacional e todo o nosso respeito.

Ficha técnica de Galos de Briga
Selo: BMG/RCA-Victor
Gravado entre 1975 e 1976
Produzido por Rildo Hora
Tempo: 37’41″

Músicas (*):

1. Gol anulado
2. Incompatibilidade de gênios
3. O cavaleiro e os moinhos
4. Rumbando
5. Vida noturna
6. O ronco da cuíca
7. Miss Suéter (participação Ângela Maria)
8. Latin lover
9. Galos de briga
10. Feminismo no Estácio
11. Transversal do tempo
12. O rancho da goiabada

(*) Todas as músicas de João Bosco/Aldir Blanc

Comentários

  • Amigo, não podia ter escolhido disco melhor pra fazer a resenha aqui! Sou mais novo que você, tinha só dois anos quando essa pérola da música brasileira foi lançada, mas, da mesma forma que você, também cresci ouvindo esse disco, sempre adorei essa capa intrigante dele e também fui atrás do CD e acabei adquirindo-o! Tenho certeza que esse disco entrou inexplicavelmente na vida de muitos brasileiros como nós! Pra mim, João Bosco & Aldir Blanc são a dupla dinâmica da MPB, do samba e do bolero!
    Considero esse disco como o melhor que já ouvi! Também gosto muito do “Caça À Raposa” (que também tem uma capa de arrepiar, e também lindas músicas), mas “Galos de Briga” é bem superior!
    Gosto de todas as músicas, mas principalmente “Miss Suéter”, “O Rancho da Goiabada”, “Feminismo no Estácio” e “Rumbando”.
    Parabéns pelo excelente gosto, Rodrigo, e continue com a MPB, pois temos de reverenciá-la e, sobretudo, reverenciar seus expoentes maiores, amigo!