Outsiders: David Purley, um herói das pistas

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RIO DE JANEIRO – A trajetória deste outsider do esporte a motor não foi das mais brilhantes dentro da pista. Mas é impossível não lembrar dele por seu ato de heroísmo tentando salvar um colega de profissão de uma morte trágica. Quis o destino que David Purley também perdesse a vida de forma prematura, há quase 30 anos. E hoje o blog lhe presta uma merecida homenagem.

Nascido David Charles Purley na cidade de Bognor Regis, em West Sussex, no dia 26 de janeiro de 1945, o britânico até se assemelha a Brett Lunger, recém-retratado no blog, por ter servido às Forças Armadas de seu país. Como súdito da Rainha, Purley foi paraquedista no Iêmen, antes de finalmente começar sua carreira no automobilismo. Seu início nas pistas foi com o lendário AC Cobra e também com modelos Chevron, antes da passagem aos monopostos, no início da década de 70.

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Após uma passagem pouco brilhante pela Fórmula 3, Purley chegou à Fórmula 2 em 1972. O piloto era “paitrocinado”, pois a Lec Refrigeration era de seu pai e foi ela quem estampava seu nome no March 722 Ford BDA que o piloto usou no Campeonato Europeu daquele ano e também no Torneio Brasileiro de F-2 realizado no fim daquele ano em Interlagos.

David conquistou um 3º lugar nas ruas de Pau, na França, um oitavo posto em Mallory Park e o 12º em Zeltweg. Disputou nove corridas do Europeu e terminou o campeonato em 19º, com quatro pontos. No Torneio Brasileiro, o piloto foi 6º colocado na primeira rodada, abandonou a segunda e foi sétimo na terceira, somando um ponto ao fim da competição.

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No ano de 1973, o britânico resolveu dar o maior passo na carreira. Apoiado mais uma vez pelo patrocínio paterno, comprou um March 731 com motor Ford Cosworth e montou sua equipe. A estreia foi em 3 de junho, nada menos que no GP de Mônaco, nas ruas de Monte-Carlo.

Purley qualificou-se em 24º entre 26 pilotos e largou em vigésimo-terceiro após o forfait de George Follmer, da Shadow. Mesmo sendo o mais inexperiente piloto do grid, ele teve desempenho bastante aceitável até abandonar a corrida na 31ª volta, em razão de um vazamento de combustível.

Após saltar as corridas da Suécia e da França, uma vez que o orçamento não cobria todas as etapas, David apareceu de novo em Silverstone, para a disputa do GP da Inglaterra. A corrida marcaria a estreia de outro piloto britânico, que vinha crivado de expectativas após levar o bicampeonato inglês de Fórmula 3: Roger Williamson, que também tinha um March 731, apoiado pelo seu mecenas, Tom Wheatcroft.

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Na qualificação, Purley foi bem, antes de se acidentar e danificar seu March. Mesmo com o 16º lugar que o deixaria no meio do pelotão para a largada em Silverstone, ficou fora da corrida. Foi melhor assim, porque ele escapou de um dos maiores acidentes da história da Fórmula 1, provocado pelo sul-africano Jody Scheckter, ao rodar a mais de 200 km/h na saída da curva Woodcote, antes da reta dos boxes. Vários carros bateram e entre eles estava o March de Roger Williamson.

Veio então o GP da Holanda, no circuito de Zandvoort, onde o destino uniria – de forma cruel – dois jovens compatriotas em busca de um lugar ao sol na categoria máxima do automobilismo mundial.

Para aquela corrida, realizada no dia 29 de julho de 1973, há mais de quarenta anos, Roger Williamson teve um bom desempenho nos treinos classificatórios. Colocou-se na nona fila de largada com seu carro, marcando o tempo de 1’22″72, pouco mais de três segundos pior que a pole position do sueco Ronnie Peterson, da Lotus. Purley alinhou na 21ª posição, com o tempo de 1’23″09.

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Quando a corrida começou, os dois logo ganharam posições: Roger passou a primeira volta em décimo-sexto e David em décimo-oitavo. Consta, inclusive, que Williamson teria queimado a largada, mas essa é uma história que entrou para o terreno das lendas. O que importa é que o semi-estreante do carro vermelho número #14 avançava célere no início e Williamson era o 13º a partir da terceira passagem, com Purley logo atrás.

Na oitava volta, a tragédia.

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A pista de Zandvoort, que havia sido limada do calendário do Mundial de Fórmula 1 em 1972 em razão de problemas de segurança, teria mais um acidente fatal para o prontuário da história da categoria. Suspeita-se que o March 731 de Roger Williamson tenha sofrido uma quebra ou mesmo um estouro de pneu a uma velocidade calculada em 209 km/h, na curva Panorama, após um trecho de esses de média/alta velocidade. Após perder o controle do carro, o britânico bateu com violência no guard-rail e no impacto, piloto e bólido foram lançados de volta à pista.

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O carro se arrastou por vários metros no asfalto – com o piloto logicamente dentro dos destroços – e, no contato do alumínio do chassi do March com o chão, saíram fagulhas que se agravaram quando o combustível que vazou na batida entrou em contato com as partes quentes – leia-se motor e freio.

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Ao perceber a gravidade do acidente, David Purley agiu por instinto. Parou seu carro à beira da pista, no lado esquerdo, atravessou o traçado e correu em direção ao bólido que já se incendiava rapidamente. O piloto chegou a ouvir o colega que estava preso dentro de seu próprio carro, em completo estado de desespero.

“Pelo amor de Deus, David, me tire daqui!”

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O esforço de David Purley foi inútil. As chamas tomavam conta do March de Roger Williamson e, chocado com o que via e com o que ouvira, Purley tentou fazer de tudo para salvar o compatriota. Sem que o socorro chegasse a tempo e diante do despreparo dos fiscais de pista, ele lançou mão de um extintor de incêndio, antes de ser demovido de suas intenções por outro comissário, que nada fazia a não ser olhar, incrédulo, para o carro destruído – até porque não usava roupas antichama, apropriadas para combate ao fogo.

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Purley deixou o local do acidente desolado e em prantos. E os bombeiros, com um único e pesado caminhão, demoraram longuíssimos oito minutos para chegar e não puderam fazer mais nada. Roger Williamson morreu carbonizado pelas chamas e asfixiado pela fumaça. Ele tinha apenas 25 anos.

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Logo após a anunciada morte de Williamson, começou a caça às bruxas. Ed Swarts, o diretor de prova na ocasião, disse que houve “um grave erro de interpretação do que aconteceu na pista”. Muitos colocam a culpa pela demora da chegada do caminhão de bombeiros nas costas do comissário John Corsmit, que teria visto Purley atravessar a pista e achado que o incêndio era do March número #18 – e não do #14 de Roger Williamson, como se saberia depois. E aí já era tarde…

Certo é que Purley, mesmo após o GP da Holanda, ainda regressou naquele ano de 73 ao Mundial de Fórmula 1 para mais duas participações. Em Nürburgring, largou de último para chegar em 15º, uma volta atrasado. Na Itália, em Monza, saiu de penúltimo e terminou em nono lugar, seu melhor resultado num ano tristíssimo para o piloto.

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Como reconhecimento por seus esforços heroicos em tentar salvar Roger Williamson da morte, o governo britânico condecorou David Purley com a medalha George Cross, a mais alta distinção por coragem em situações do gênero – e o piloto receberia ainda outros doze prêmios semelhantes. Também o registro fotográfico do acidente, feito por Cor Mooij (cujas fotos ilustram este post), recebeu o prêmio World Press Photo, daquele ano de 1973.

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Em 1974, o piloto voltou à Fórmula 2 para disputar a categoria primeiro com um chassi March 742 e posteriormente com o Chevron B27, ambos com motor BMW e alinhados pela equipe do milionário de Hong Kong Bob Harper. Conseguiu dois segundos lugares em Salzburgring, na Áustria e em Enna-Pergusa, na Itália. Acabou o campeonato em 4º lugar, com 13 pontos. Purley regressaria à F-1 naquele mesmo ano para tentar classificar o Token RJ02, projeto de Ray Jessop – que nada mais era do que o finado Rondel – no GP da Inglaterra, em Brands Hatch. Com 35 inscritos para 25 vagas, Purley ficou de fora do grid por 0″3, perdendo o último lugar para Tim Schenken, a bordo de um Trojan.

No ano seguinte, Purley fez apenas uma corrida de F-2: disputou a rodada de Hockenheim com um March 752 BMW da equipe do piloto japonês Masami Kuwashima, abandonando a disputa. E em 1976, o piloto venceu o Campeonato Britânico de Fórmula 5000, a bordo de um Chevron-Cosworth V6.

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Por isso foi surpresa quando, três anos após aparecer na lista de inscritos do GP da Inglaterra, David Purley reapareceu numa prova de Fórmula 1. E com um carro novo. Construído por Mike Pilbeam e financiado mais uma vez pelo “paitrocínio” da Lec Refrigerations, o Lec CRP1 seguia a tendência dos bólidos da época, com exceção feita a Ferrari, Ligier e BRM, lançando mão do motor Ford Cosworth V8. A primeira aparição do carro foi na Corrida dos Campeões, em Brands Hatch, onde o piloto terminou em 6º lugar.

O britânico inscreveu-se para o GP da Espanha, em Jarama, que seria disputado em 8 de maio de 1977. Com o tempo de 1’22″89, Purley ficou em trigésimo entre 31 inscritos – só foi melhor que Conny Andersson, da BRM e – claro – ficou de fora do grid. Após saltar o GP de Mônaco, o Lec reapareceu para o GP da Bélgica, em Zolder.

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Desta vez, Purley não ficou de fora. Entrou como o vigésimo de um grid de 26 carros e, graças à chuva que caiu incessantemente na corrida, ele chegou a ocupar – pasmem – o 3º lugar na disputa, entre as voltas 20 e 21. Mas caiu para décimo-oitavo na 23ª passagem e não saiu mais das últimas colocações. Acabou em 13º, três voltas atrasado.

Em Anderstorp, o britânico voltou a alinhar com seu Lec CRP1. Largou em 19º e foi o décimo-quarto, tendo sido apenas 1″695 mais lento, em ritmo de corrida, que o autor da melhor volta da corrida – Mario Andretti, da Lotus. Penúltimo do grid do GP da França, em Dijon-Prenois, David abandonaria após completar cinco voltas, devido a um acidente.

O piloto se inscreveu para o GP da Inglaterra, que aconteceria em Silverstone, para tentar uma vaga na concorrida corrida caseira. Os organizadores receberam nada menos que quarenta inscrições para 26 vagas no grid e o jeito foi acomodar as equipes menores e de carros particulares numa pré-qualificação para tirar os mais velozes e deixar 30 pilotos nos treinos oficiais.

De cara, quatro carros não disputaram o treino extra, reduzindo o total de inscritos a 36. Purley tentou fazer sua parte e logo marcou 1’20″63, um tempo bastante razoável. Mas perto do fim da pré-qualificação, quando tentava melhorar e obter uma vaga entre os classificados, o acelerador do Lec CRP1 travou.

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Foram momentos de desespero para o piloto, que tentou reduzir ao máximo a velocidade para evitar um choque ainda mais violento com os muros de proteção do circuito britânico. Em menos de um metro, o carro foi de 173 km/h a zero, submetendo o corpo de David Purley à inacreditável desaceleração de 179.8 g – o que fez o britânico entrar para o Guinness Book of Records como o homem que sobreviveu a pior desaceleração já vista. Isto até 2003, quando Kenny Brack, na Fórmula Indy, sobreviveu a uma desaceleração de 214 g quando seu carro decolou e se chocou contra o alambrado da reta oposta do Texas Motor Speedway.

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Com múltiplas fraturas em ambas as pernas, na pélvis e em várias costelas, David Purley sobreviveu ao acidente e sua carreira na Fórmula 1 foi interrompida após apenas 7 GPs disputados em 13 participações. O Lec CRP1 do acidente acabou refeito e hoje está exposto no museu de carros de corrida históricos fundado por… Tom Wheatcroft, em Donington Park. Reparem, inclusive, que atrás do carro refeito estão os “restos mortais” do verdadeiro carro destruído no acidente e no que ele se transformou – dando uma ideia da gravidade da batida e do verdadeiro milagre que foi Purley ter saído vivo dos destroços.

O piloto abandonou definitivamente o automobilismo após algumas aparições esparsas na Aurora AFX Series, uma competição britânica de carros antigos de Fórmula 1, bastante popular até o início dos anos 80. David Purley trocou os carros pelos aviões e tornou-se um excelente acrobata, especializando-se em manobras de risco no ar.

Em 1985, com apenas 40 anos de idade, Purley participava de mais um evento aeronáutico nas proximidades da sua Bognor Regis natal, no Canal da Mancha, quando seu biplano Pitts Special caiu no mar. O corpo do piloto nunca foi encontrado.

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Assim chegava ao fim a curta vida de David Purley, essa extraordinária personagem da história do automobilismo, para sempre lembrado por sua valentia e heroísmo no GP da Holanda de 1973.

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