Discos eternos – Voo de coração (1983)

Ritchie - Vôo Do Coração (1983)

RIO DE JANEIRO – Um fenômeno pop como poucas vezes vimos num país que respirava os ares de uma moribunda ditadura. Um artista que não nasceu no Brasil e que conseguiu alcançar níveis estratosféricos de popularidade. Um disco que vendeu tanto ou mais – reza a lenda – que o campeão de faturamento de sua gravadora.

A personagem por trás disso tudo é Ritchie, ou melhor: Richard David Court. Inglês de Beckenham, no condado de Kent, nasceu em 1952 e foi educado em colégios internos antes de ingressar na Universidade de Oxford no curso de Literatura Inglesa. Com 20 anos apenas, abandonou os estudos: tornou-se flautista num grupo de músicas de protesto. Nessa época, ele conheceu Lúcia Turnbull, Liminha e Rita Lee. A convite desta última, Ritchie foi convidado para conhecer o Brasil. Sem saber o que lhe aconteceria dali para a frente.

Fez parte de grupos como o Scaladácida e d’A Barca do Sol, antes de trocar a flauta pelos vocais e cantar músicas em inglês no Vímana, grupo produzido por Patrick Moraz, antigo tecladista do Yes, onde o guitarrista era um certo Lulu Santos e o baterista, um tal de Lobão.

Com o fim do Vímana, graças à debandada de Lulu Santos e ao casamento de Moraz com Liane Monteiro desfeito pela paixão desta última por Lobão, Ritchie ficou uns tempos fora. Amigo de Jim Capaldi, da lendária banda de rock progressivo Traffic, participou de Let The Thunder City, álbum solo do baterista. Ritchie fez os arranjos e foi o vocalista de algumas faixas.

Em 1982, começava a revolução do rock brasileiro com o Circo Voador de Perfeito Fortuna, lançando grupos como o Barão Vermelho e a Blitz, onde Lobão, o mesmo do Vímana, era o baterista – antes de cair fora e lançar o disco Cena de Cinema – que hoje é bradado aos quatro ventos pelo próprio Lobão como um disco pioneiro na cena independente: um erro grave, pois Antônio Adolfo e Tim Maia, nos anos 70, já tinham enveredado por esse caminho.

Nessa época, descontente por não fazer parte daquilo tudo que seu amigo Lobão já fazia, Ritchie lembrou de Bernardo Vilhena, antigo letrista de músicas do Vímana e que fazia parte de um grupo de poetas chamado Nuvem Cigana, onde também se destacavam Chacal, Charles Peixoto e Ronaldo Santos. Com seus textos, eles ajudaram a renovar a poesia brasileira a partir dos anos 70. E Bernardo, na opinião de Ritchie, era o nome perfeito para ajudá-lo a compor canções para lançar o inglês como artista solo por aqui.

Com uma força de Liminha, que produziu a primeira demo num estúdio de quatro canais, Ritchie gravou “Menina Veneno” e “Baby, Meu Bem”. A fita foi levada para a CBS, que percebeu o estouro que a primeira música poderia causar. Um tiro certeiro. Um golaço de Ritchie e Bernardo Vilhena – inesquecível.

Meia noite no meu quarto
Ela vai subir
Ouço passos na escada
Vejo a porta abrir
Um abajur cor de carne
Um lençol azul
Cortinas de seda
O seu corpo nu

Menina Veneno
O mundo é pequeno
Demais pra nós dois
Em toda cama que eu durmo
Só dá você, só dá você
Só dá você!
Yeh! Yeh! Yeh! Yeh!

Seus olhos verdes
No espelho
Brilham para mim
Seu corpo inteiro
É um prazer
Do princípio ao sim

Sozinho no meu quarto
Eu acordo sem você
Fico falando pras paredes
Até anoitecer

Menina Veneno
Você tem um jeito
Sereno de ser
E toda noite
No meu quarto
Vem me entorpecer
Me entorpecer!
Me entorpecer!
Yeh! Yeh! Yeh! Yeh!

Menina Veneno
O mundo é pequeno
Demais pra nós dois
Em toda cama que eu durmo
Só dá você, só dá você
Só dá você!
Yeh! Yeh! Yeh! Yeh!

Meia noite no meu quarto
Ela vai surgir
Eu ouço passos na escada
Eu vejo a porta abrir

Você vem não sei de onde
Eu sei, vem me amar
Eu nem sei qual o seu nome
Mas nem preciso chamar

Menina veneno
Você tem um jeito
Sereno de ser
E toda noite
No meu quarto
Vem me entorpecer
Me entorpecer!
Me entorpecer!
Yeh! Yeh! Yeh! Yeh!

Menina Veneno
Menina Veneno
Yeh! Yeh!
Menina Veneno
Menina Veneno
Yeh! Yeh!

Cabe aqui um parêntese: recentemente, nas redes sociais, muita gente passou a jurar que Ritchie cantava Um abajur cor de carmim e não Um abajur cor de carne, como dito na letra aqui transcrita. Até pode fazer sentido, diante do sotaque do inglês, que transformava palavras paroxítonas em oxítonas.

A popularidade assombrosa da música levou o compacto simples a vendas incríveis. Foram meio milhão de cópias, o que levou a CBS, através do selo Epic, a gravar o primeiro disco de Ritchie, ainda naquele ano de 1983. A gravadora comemorou: afinal, tinha dois artistas com as músicas mais executadas no país – Ritchie e Michael Jackson, que explodia com “Billie Jean”, do clássico álbum Thriller.

Com o auxílio luxuoso de Lulu Santos – que fez a guitarra em “Casanova”, de Liminha no baixo, de Steve Hackett (do Genesis), que faz o belo solo de guitarra da faixa-título e de Lobão na bateria, além de Zé Luiz Segneri no sax e Chico Batera na percussão, Ritchie – pilotando teclados e tocando flauta, logicamente – fez mais estrondo com Voo de Coração.

Além do megahit “Menina Veneno”, ele fez “Casanova” ser trilha sonora de novela das oito (Champagne, em 1984) e estourou – também – com a ótima “Pelo Telefone”, com “A Vida Tem Dessas Coisas” e logicamente, a bela balada que deu título ao disco. Saldo do sucesso de Ritchie: 1,2 milhão de cópias vendidas e uma turnê de divulgação que passou por 140 cidades.

Há quem diga – mas é provável que seja mais uma lenda urbana – que, incomodado com o sucesso de Ritchie e seu 1,2 milhão de discos que aumentaram o faturamento da CBS, ninguém menos que Roberto Carlos teria pedido a cabeça do inglês. Isto cai por terra quando lembramos que o artista lançaria mais dois álbuns pela gravadora – E a Vida Continua, em 1984 e Circular, em 1985.

Um acontecimento que pode ter contribuído para a derrocada de Ritchie como artista pop foi um desentendimento com Leleco Barbosa, filho do apresentador Chacrinha, que o baniu dos shows do circuito suburbano e, por conseguinte, do Cassino do Chacrinha, o programa do popular Abelardo Barbosa nas tardes de sábado. A última música de sucesso lançada por ele, de fato, foi “Transas”, que entrou na trilha da novela Roda de Fogo e entrou no quarto álbum do cantor, em 1987.

Aos 61 anos, com nove discos gravados e mais uma participação no efêmero – e ótimo – grupo Tigres de Bengala, que formou com Cláudio Zoli, Vinícius Cantuária, Dadi, Mu Carvalho e Billy Forghieri, Ritchie ainda é cultuado pelos fãs de seus trabalhos nos anos 80 – e que vão ao delírio com eventuais aparições dele em Festas Ploc ou eventos do gênero, que cultuam fervorosamente aquela década.

Ele pode ser encontrado no twitter com a conta @ritchieguy (“O inglês mais perto de você”, de acordo com seu perfil em 140 caracteres) e, com certeza, guarda boas lembranças daqueles tempos de “Menina Veneno”.

Ficha técnica de Voo de Coração
Selo: Epic/CBS (hoje Sony Music)
Gravado e lançado em 1983
Produzido por Vinyl

Músicas:

1. No Olhar (Ritchie/Bernardo Vilhena)
2. A Vida Tem Dessas Coisas (Ritchie/Bernardo Vilhena)
3. Voo de Coração (Ritchie/Bernardo Vilhena)
4. Casanova (Ritchie/Bernardo Vilhena)
5. Menina Veneno (Ritchie/Bernardo Vilhena)
6. Preço do Prazer (Ritchie)
7. Pelo Interfone (Ritchie/Bernardo Vilhena)
8. A Carta [The Letter] (Thompson)
9. Parabéns Para Você (Ritchie/Bernardo Vilhena)
10. Tudo o Que eu Quero [Tranquilo] (Ritchie)

Comentários

  • Boa noite, curiosa a sua postagem. Por na letra colocada da música ficar
    no ouvido a sensação desde sempre que no refrão: ” do princípio ao sim “, ele poderia estar cantando ou querendo cantar ” do princípio ao fim “…. Pelo menos, é com essa idéia que eu e outras pessoas desse tempo ficaram ao longo dessas décadas…
    Cumprimentos
    Reinaldo Pereira

  • Tenho o meu guardado,o tempinho bom! Colocar a fita no TKR, é pois também tinha a fita,quê rolava no meu Passat Ts mexido, com peças da Hotbird ,rebaixado sem dois elos e meio e por ai vai.