Equipes históricas – Tyrrell, parte I

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Ken Tyrrell (1924-2001): aviador, madeireiro, piloto mediano de competição, chefe de equipe e emérito descobridor de talentos no automobilismo. Sua equipe até hoje deixa saudades nos fãs da Fórmula 1

RIO DE JANEIRO – A próxima equipe na série “Equipes Históricas” está marcada para sempre na história do esporte. Seu fundador foi uma lenda que veio da Real Força Aérea Britânica para as pistas, tornando-se um emérito descobridor de talentos, que farejava ao longe. Um desses nomes que trouxe para o estrelato, virou igualmente uma lenda do automobilismo. Refiro-me a Ken Tyrrell, que nos deixou em 2001 – mas seu sobrenome permanece vivo no imaginário e na história da Fórmula 1.

Taurino de 3 de maio de 1924, Robert Kenneth Tyrrell nasceu em East Horsley, na região britânica do Surrey. Serviu à Royal Air Force (RAF) na II Guerra Mundial, mostrando uma habilidade incomum como engenheiro de fuselagem das aeronaves que defendiam a terra da Rainha na batalha contra o Eixo Japão-Itália-Alemanha. Após a vitória dos aliados em 1944, deu baixa da Força Aérea, trabalhando pelos anos seguintes numa serraria, onde aprendeu o ofício de madeireiro. Seu apelido, nessa época, era “Chopper”.

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Nos tempos de Fórmula 3: um piloto apenas mediano

No início da década de 50, atraído pelo crescente interesse em torno do automobilismo, resolveu tornar-se piloto de competição. Tinha 28 anos quando estreou na Fórmula 3 com um Norton-Cooper de 500cc, a cilindrada da época. Alcançou a Fórmula 2, em que obteve resultados modestos com um Cooper-Climax, dividindo equipe com Cecil Libowitz e Alan Brown, que depois chegaria – sem sucesso – à F-1.

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Com um Cooper T72 de Fórmula 3 em 1964: Stewart foi a primeira grande descoberta de Ken Tyrrell no automobilismo

Percebendo suas limitações como piloto, Ken Tyrrell rapidamente passou para o outro lado do balcão. Em 1959, montou o embrião do que seria uma das mais icônicas escuderias britânicas do tempo dos “garagistas”. Em sociedade com o irmão, montou uma estrutura para competir na Fórmula Junior. E lá revelou o primeiro grande nome que passou por sua equipe: Jackie Stewart. Isso foi em 1963. Dois anos depois, o talentosíssimo escocês já estava na Fórmula 1, em que brilhou intensamente no ano de estreia, guiando os carros da BRM. Quem também esteve ao lado da velha raposa aprendendo os segredos da pilotagem em quatro rodas foi John Surtees, outro piloto com quem trabalhou no início da equipe.

Em 1967, Ken despertou para a possibilidade de ir mais além no automobilismo. Stewart mostrara o caminho – e esse caminho era a F-1. O surgimento do motor Ford Cosworth DFV V8 quando o regulamento de motores com capacidade cúbica de 3 litros foi criado também serviu para a abertura de um novo horizonte, bem como as vitórias do Lotus 49 de Colin Chapman. Argumentos não faltavam, bem como os primeiros patrocinadores. E foram eles que garantiram o acesso de Tyrrell para a categoria máxima do automobilismo.

Com o apoio da Ford, da Dunlop e da petroleira francesa Elf, então de origem estatal, Ken Tyrrell realizou o sonho: aos 43 anos, tornava-se chefe de equipe da Matra International, uma joint-venture entre a marca francesa e a equipe Tyrrell. O britânico foi convincente o suficiente para fazer Jean-Luc Lagardère, então presidente da Matra, a usar o motor Ford Cosworth DFV ao invés de um propulsor V12 como os franceses queriam. A marca estreara na F-1 em 1967, mas usando o chassi MS7 de Fórmula 2, com um motor Ford Cosworth FVA de 1,6 litro apenas.

Quando a temporada de 1968 começou em 1º de janeiro com o GP da África do Sul, em Kyalami, começava a se desenhar uma das parcerias mais vitoriosas da Fórmula 1 moderna: Ken Tyrrell na chefia e o seu pupilo de Fórmula Junior Jackie Stewart na pilotagem. Cansado de levar ferro correndo pela BRM nos primeiros anos do regulamento 3 litros, o “Escocês Voador” queria voar alto na carreira de piloto e encontrou no velho madeireiro o seu maior aliado.

Enquanto Stewart correria no Matra MS9 já com motor Cosworth, seu novo companheiro de equipe, o francês Jean-Pierre Beltoise, viria no MS7 de Fórmula 2 para chegar em 6º na abertura do campeonato. A corrida de Stewart terminou após 43 voltas, com problemas mecânicos. No entanto, o escocês não participaria dos GPs da Espanha e de Mônaco: Beltoise foi 5º em Jarama na estreia do MS10, mas em Monte-Carlo acabou competindo com o MS11, equipado com o motor V12 que seus compatriotas insistiam em utilizar. Naquela corrida, estreou outro francês: Johnny Servoz-Gavin, que se acidentou na quarta volta.

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Em Zandvoort, Stewart deu à Matra e a Ken Tyrrell a primeira vitória na Fórmula 1

Jackie regressou em Spa-Francorchamps no GP da Bélgica: chegou em 4º lugar. E logo na corrida seguinte, em Zandvoort, na Holanda, deu à Matra a primeira vitória do chassi MS10 na Fórmula 1, em dobradinha com Beltoise a bordo do carro com motor V12 e mais de um minuto e meio atrás do companheiro de equipe. Em Rouen Les Essarts, debaixo de chuva torrencial, mais um pódio para Stewart, com a 3ª colocação. No GP da Inglaterra, um suado pontinho com o sexto posto. E veio o GP da Alemanha, uma das maiores exibições que um piloto pôde fazer no Inferno Verde de Nürburgring.

Naquele dia 4 de agosto de 1968, uma chuva inclemente tomou conta do Nordscheleife e Stewart largava da 6ª posição num grid de 20 carros. Na pole, Jacky Ickx, então na Ferrari e já apelidado de “Rei da Chuva”, pela capacidade incrível de se manter competitivo mesmo sob condições adversas. Com a pista molhada, o belga era praticamente imbatível.

Era.

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A bordo do Matra MS10, Stewart deu um baile no GP da Alemanha, chegando mais de 4 minutos à frente de Graham Hill

Stewart deu um show no molhado. E Ickx, em perfeito contraste, caiu para 6º na primeira volta enquanto o escocês bailava como um mestre a bordo do MS10 azul número #6. Aliás, quem tinha dúvidas acerca do potencial de Jackie, pôde ter a prova dos nove numa corrida perfeita do britânico. Ele liderou de ponta a ponta e enfiou nada menos que quatro minutos e três segundos de vantagem sobre Graham Hill, a bordo da Lotus 49. Com sua segunda vitória no ano, o piloto da Matra estava a apenas quatro pontos do rival na briga pela liderança do Mundial de Pilotos.

Saldo positivo: vice-campeonato para Stewart e 3º lugar para a Matra no Mundial de Construtores de 1968

Em contrapartida, na velocíssima pista de Monza, um motor quebrado arruinou a corrida de Stewart, que liderou por seis voltas e vinha em segundo quando abandonou. Quem herdou a posição, de forma surpreendente, foi Johnny Servoz-Gavin. No Canadá, Jackie chegou apenas em 6º lugar, mas compensaria com o terceiro triunfo do ano em Watkins Glen, 25 segundos à frente de Hill. No México, o escocês chegou em sétimo. Ao fim do ano, saldo positivo: vice-campeonato para Stewart no Mundial de Pilotos, doze pontos atrás de Graham Hill e 3º lugar para a Matra entre os Construtores.

A parceria entre o construtor francês e Ken Tyrrell seguiu firme para 1969. Todos ficaram muito satisfeitos com os resultados e um novo carro estava em construção, como substituto do MS10 que atingira seu limite. Mesmo assim, com o modelo velho, Stewart largou na frente da concorrência naquela temporada, vencendo o GP da África do Sul em Kyalami, dominando as 80 voltas do início ao fim.

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Stewart na estreia do chassi MS80 em Parc Montjuich no GP da Espanha: notem o aerofólio traseiro e sua altura

No GP da Espanha, sob os auspícios de Gérard Ducarouge e Bernard Boyer, estreou o modelo MS80, muito mais moderno que o antecessor e feito sob medida para aproveitar o potencial do motor Ford Cosworth V8. Era uma época em que as equipes e os engenheiros estavam em busca do melhor desempenho dos carros, usando e abusando de asas com artefatos inclusive móveis e que chegaram a ser montados a quase 2 metros do nível do chão, porque a CSI da Federação Internacional de Automobilismo, responsável pelas regras da F-1, não tinha um padrão definido.

Isso provocou, inclusive, dois acidentes graves na prova disputada no Parc Montjuich, com as Lotus 49 de Graham Hill e Jochen Rindt. Com o Matra, nada aconteceu: Stewart venceu absoluto e disparou na liderança do campeonato. Na prova seguinte, em Mônaco, os Fórmula 1 correram sem aerofólios traseiros: o escocês partiu da pole position, mas o MS80 o deixou na mão com um problema de junta universal. A vitória em Monte-Carlo foi do “Mister Mônaco”, Graham Hill.

Em Zandvoort, com os aerofólios reduzidos e reposicionados, a temporada prosseguiu com o GP da Holanda. Stewart largou na primeira fila e após superar as Lotus de Hill e Rindt, com quem duelou nas primeiras 15 voltas, venceu com folga de 25 segundos para o helvético Jo Siffert. A Matra depois comemoraria a segunda dobradinha de sua história na F-1 em pleno GP da França, na pista montanhosa de Clérmont-Ferrand, no quarto triunfo do “Escocês Voador” em cinco provas.

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Duelo de Titãs: Stewart e Rindt brigaram pela ponta em Silverstone, mas a vitória foi – de novo – do escocês da Matra

No GP da Inglaterra, a Matra entrou na mesma seara que já estavam Lotus e McLaren, embarcando numa ambiciosa aventura: a construção de carros F-1 com tração total nas quatro rodas. O 4WD do construtor francês foi o modelo MS84, que Beltoise usou sem muito sucesso em Silverstone. A bordo do ‘convencional’ MS80, Stewart deu um show durante uma disputa épica com Jochen Rindt e depois da queda de rendimento do austríaco, venceu com uma volta de vantagem para Jacky Ickx, da Brabham.

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A vitória espetacular de Jackie no GP da Itália deu ao Escocês Voador o título antecipado para ele, Matra e Ken Tyrrell

A conquista do título por parte do escocês, da Matra e de Ken Tyrrell como chefe de equipe era questão de tempo, mas a vitória espetacular de Ickx por quase um minuto em cima de Stewart, no GP da Alemanha, jogou água no chope dos carros azuis. Mas no GP da Itália não houve jeito: numa corrida espetacular, com 14 trocas de líder, Stewart venceu com a média recorde de 236,521 km/h, superando Jochen Rindt por meros oito centésimos de segundo. Com 60 pontos somados, tanto o piloto quanto a Matra se consagraram campeões mundiais por antecipação. Ken Tyrrell tinha todos os motivos – e mais um – para sorrir. Sua aposta em Stewart tinha rendido frutos finalmente.

As últimas provas de 1969 foram “pró-forma”: no Canadá, Stewart e Ickx colidiram numa disputa pela liderança e Beltoise liderou a equipe Matra na chegada com o 4º lugar. De volta, Johnny Servoz-Gavin entrou a bordo do complicado MS84, completando a disputa em sexto. Nos EUA, em Watkins Glen, nenhum dos carros terminou na zona de pontuação e no GP do México Stewart fechou o ano em quarto, com Beltoise em quinto e Gavin em oitavo. O campeonato terminava com o primeiro título de Jackie Stewart, somando 63 pontos – 26 à frente do vice Jacky Ickx. A Matra levou o Mundial de Construtores, superando Brabham, Lotus e McLaren, além de BRM e Ferrari, que tiveram um péssimo campeonato.

Mas nos bastidores, desenhava-se uma mudança que teria consequências diretas para o futuro da equipe de Ken Tyrrell: pressionada pelo seu conselho diretor, a Matra Sport foi obrigada a investir novamente nos motores V12 para 1970, o que desagradava profundamente a Ken Tyrrell. Os desdobramentos, vocês verão no próximo post da série.

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