Equipes históricas – Ligier, parte X

Brundle e Blundell: parecia dupla sertaneja, mas os britânicos que foram colegas na Brabham dividiram a Ligier na temporada de 1993

RIO DE JANEIRO – Corria o fim do ano de 1992 e a Ligier mudava de mãos: Oncle Guy, por 200 milhões de francos, desfez-se de sua própria escuderia e vendeu-a para o empresário Cyril de Rouvre, que já tivera uma experiência malsucedida na Fórmula 1 como proprietário da AGS entre o fim de 1989 e meados da temporada de 1991.

Mas desta vez, tudo prometia ser diferente: a Ligier tinha o contrato para fornecimento de motores Renault por mais duas temporadas e a promessa de um carro razoavelmente competitivo, mesmo sem todos os recursos de eletrônica empregados pelas grandes equipes – principalmente a Williams e seus modelos “de outro planeta”, dotados de suspensão inteligente.

Aliás, a equipe de Frank cedeu a transmissão semi-automática à Ligier e foi tudo o que a equipe conseguiu de tecnologia. O JS39, projeto de Paul Crooks sob a supervisão de Gérard Ducarouge e aerodinâmica desenvolvida por Loic Bigois, era antes de tudo um carro convencional, ou “passivo”, como se dizia na época. Para guiá-lo, a equipe contratou dois novos pilotos que já se conheciam da finada Brabham, ambos britânicos: o experiente Martin Brundle, que fora razoavelmente bem no ano anterior pela Benetton e o jovem Mark Blundell, de volta após defender a Peugeot no World Sportscar Championship, morto pelas mãos malignas de Max Mosley, com o beneplácito de Bernie Ecclestone.

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Pódio para Blundell na primeira corrida do ano: o primeiro da Ligier em sete temporadas

O desempenho positivo da pré-temporada foi traduzido em pódio logo na prova de estreia: o GP da África do Sul, em Kyalami, viu um piloto da Ligier de volta aos três primeiros lugares desde… 1986! Mark Blundell sobreviveu à hecatombe daquela corrida e chegou em 3º lugar. Enquanto Brundle tinha um início de ano pavoroso, o colega de equipe voltaria a pontuar no GP do Brasil com a quinta posição.

Após uma péssima performance em qualificação e em corrida no GP da Europa, em Donington Park, a equipe reencontrou-se em San Marino e desta vez foi Brundle quem chegou ao pódio, com um excelente 3º lugar. Na Espanha, Blundell foi sétimo e no Principado de Mônaco, Martin beliscou mais um pontinho com a sexta posição.

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A melhor performance em qualificação foi em casa, no GP da França: 2ª fila do grid, perdendo apenas para as quase imbatíveis Williams de Prost e Hill

A equipe experimentava uma constância há muito tempo não vista e de novo Brundle pontuou com um 5º lugar no GP do Canadá. E a melhor performance em qualificação no ano veio, como era de se supor, no quintal de casa – Magny-Cours. Os dois pilotos ocuparam toda a segunda fila, num histórico 1-2-3-4 dos motores Renault em treinos oficiais. Blundell ficou em 4º enquanto se manteve na pista e até encontrar pela frente a lentíssima Tyrrell de Andrea de Cesaris. Foi abalroado, rodou e abandonou a prova no ato. Brundle ocupou o terceiro lugar em grande parte da disputa, mas após o segundo pit stop, perdeu o fôlego e chegou em 5º lugar.

Na Inglaterra, após sofrer um tremendo susto nos treinos livres, destruindo seu JS39 numa passarela e debaixo de chuva, Blundell ainda beliscou a 7ª posição. Martin era um ótimo quarto colocado e poderia ter sido terceiro – já que Ayrton Senna parou na última volta – se a transmissão Williams semi-automática não tivesse se entregado a sete voltas do final. Em Hockenheim, Blundell conquistou o segundo pódio do ano e o terceiro da equipe na temporada, após uma batalha campal com a Ferrari de Gerhard Berger.

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Apesar dos dois pódios de Blundell, Brundle era mais regular e marcou mais pontos que o companheiro de equipe em 1993

Até ali, a Ligier ocupava o 4º lugar no Mundial de Construtores com 19 pontos, nove a mais que a Ferrari. Mas àquela altura, os problemas de Cyril de Rouvre com a justiça francesa começavam a pesar no desempenho dos carros do time fundado por Guy Ligier. E por consequência, começou a faltar dinheiro e o desempenho decaiu.

Na Hungria, Brundle conseguiu ainda uma razoável quinta posição, mas depois disto, os resultados rarearam. A Ferrari melhorou já sob a tutela de Jean Todt, que assumira no GP da França e começara um trabalho de reconstrução da escuderia de Maranello. A pavorosa F93A, que evoluiu nas mãos de John Barnard, revisando o projeto de Jean-Claude Migeot e Steve Nichols, começava a experimentar uma evolução nas mãos de Jean Alesi e Gerhard Berger.

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A bela pintura concebida por Hugo Pratt para o Ligier JS39 de Martin Brundle, no GP do Japão

Com isso, não foi surpresa que os franceses só conquistassem mais dois pontinhos – fruto de dois sextos lugares de Martin Brundle em Portugal e na Austrália. Além de se envolverem em muitos acidentes, a performance dos pilotos decaiu face a falta de fundos. O único destaque da Ligier no fim do campeonato foi a belíssima pintura encomendada pela Seita ao artista Hugo Pratt, que concebeu um design arrojado para decorar o JS39 de Brundle no GP do Japão, em Suzuka.

O saldo do campeonato, apesar dos percalços finais, foi extremamente positivo: a equipe voltou a figurar com dignidade nas provas de Fórmula 1 e terminou em 5º no Mundial de Construtores, com 23 pontos e três pódios. Seus pilotos ficaram no top 10 da classificação, mas sem poder contar com os recursos de Cyril de Rouvre, que acabou encarcerado no fim de dezembro, a Ligier se encontrava de novo no desvio para a temporada de 1994.

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Com a prisão de Cyril de Rouvre e a venda da equipe para Flavio Briatore, foram injetados poucos recursos e não houve como construir um novo carro

A decisão de não construir um novo carro, apenas evoluindo o modelo JS39 para algo perto de um carro competitivo foi um indício de um duro ano para a equipe francesa. Cyril, da cadeia, ainda teve tempo de ordenar a venda da equipe a… Flavio Briatore, que acumulava também o posto de chefe de equipe da Benetton. Aliás, o italiano – que, não custa nada lembrar, era gerente de vendas da griffe Benetton nos EUA, antes de se envolver com o automobilismo – mostrara, em pouco tempo, uma ascensão que remetia a Bernie Ecclestone e que incomodaria muita gente pelos anos seguintes.

Os pilotos que estariam a bordo do JS39B seriam o jovem Olivier Panis, então campeão da Fórmula 3000 defendendo a Dams e o compatriota Eric Bernard, que após três anos fora, voltava à categoria. Bernard servira por dois anos inteiros a Gerard Larrousse e se afastara da categoria após uma grave fratura, sofrida num dos treinos para o GP do Japão de 1991.

Como o desempenho do carro não empolgou ninguém na pré-temporada, já se antevia um ano daqueles para a Ligier e seus pilotos, especialmente Panis, que corria o sério risco de ficar “queimado” na categoria. Apesar disso, Olivier terminou todas as seis primeiras corridas do ano, com um 7º lugar no GP da Espanha como melhor resultado. Bernard não começou muito melhor e foi oitavo, igualmente em Barcelona.

Àquela altura dos acontecimentos, a Fórmula 1 vivia o tremendo baque das mortes do tricampeão Ayrton Senna e do austríaco Roland Ratzenberger. O discurso era por mudanças na segurança dos carros, inclusive com a adoção de paliativos que os deixariam mais lentos. Imediatamente, o capô do motor dos bólidos foi cortado para que os motores perdessem potência. E com um carro não muito bom, a Ligier e seus pilotos viam a temporada indo por água abaixo.

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Pódio para Bernard (foto) e Panis, de uma só vez, no GP da Alemanha: 10 pontos somados que salvaram a temporada da equipe francesa

A temporada beirava o medíocre até o GP do Alemanha, em Hockenheim. Uma carambola que tirou quase 50% do grid do caminho foi a benção para a equipe francesa. Para completar, Ukyo Katayama rodou, Damon Hill teve problemas e até Michael Schumacher, numa rara falha mecânica de sua Benetton, abandonou – em casa, para frustração de sua torcida. Panis e Bernard nada tinham a ver com isso e tiveram o enorme mérito de levar os JS39B até o final da corrida. E no pódio: 2º posto para Panis e 3º para Bernard. Uau! Um resultado e tanto.

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Schumacher de Ligier? O alemão andou no Estoril com o JS39B para “sentir” o motor Renault. Dizem que o piloto não gostou nadinha do carro…

Panis ganhou confiança e chegou logo na corrida seguinte em 6º, na Hungria. Mas Flavio Briatore já tinha outros planos para a Ligier, engendrados maliciosamente nos bastidores. Ele transferiu para a Benetton o contrato de motores da Renault e, espertamente, chegou a entregar o JS39B para Michael Schumacher andar, em Portugal, num teste durante a temporada. Reza a lenda que o alemão não teria gostado muito do carro. Também sob contrato com a equipe das cores unidas, JJ Lehto foi outro piloto que fez treinos no JS39B.

Após a melhor qualificação do ano – 6º lugar na Itália – Panis experimentou o dissabor da desqualificação no GP de Portugal por irregularidades na prancha de madeira que fora instalada nos F1 durante aquele campeonato, por apresentar um desgaste maior que o tolerado. E antes do fim da temporada, sobrou para Eric Bernard: o piloto foi afastado do carro #25 e deu lugar a Johnny Herbert, que gramava na Lotus, para o GP da Europa, em Jerez de la Frontera.

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No fim do ano, sobrou para Eric Bernard e o #25 teve Johnny Herbert e Franck Lagorce (foto) nas corridas finais da temporada

Herbert fez uma boa corrida na Espanha, largando em sétimo e chegando em oitavo, logo à frente de Panis. Rapidamente, Flavio Briatore o pôs no carro #6 para as duas últimas provas – Japão e Austrália – enquanto um novato da Fórmula 3000, Franck Lagorce, guiaria o JS39B nas provas finais de 1994. Após rodar no aguaceiro de Suzuka, Lagorce terminou com um razoável 11º lugar em Adelaide, enquanto Panis salvou mais dois pontos e fechou o ano em alta, como um dos mais regulares pilotos daquela temporada.

Considerando as dificuldades, até que o ano terminou de forma positiva para a Ligier, que fechou o Mundial de Construtores em 6º lugar somando 13 pontos – nove com Panis, quatro com Bernard. No próximo post, veremos como a equipe – já sob o jugo de Flavio Briatore – se virou sem os motores Renault para os anos de 1995 e 1996.

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