Especial Boesel 30 anos – parte V, 24h de Le Mans

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Poster oficial das 24 Horas de Le Mans de 1987, com o Jaguar XJR-8 guiado por John Watson. Provocação do ACO à Porsche?

RIO DE JANEIRO – A vitória nos 1000 km de Silverstone injetou ânimo na equipe TWR-Jaguar para tentar buscar uma façanha que muitos consideravam impossível: derrotar a Porsche na corrida que os alemães sabiam, como ninguém, ganhar de cor e salteado – as 24 Horas de Le Mans.

Após o primeiro triunfo saboreado em 1970, com Hans Herrmann/Dick Attwood, a casa de Weissach alcançara onze conquistas e não sabia o que era perder em Sarthe desde 1981. Tempos de predomínio dos protótipos 936/81, 956 e de seu sucessor, o 962C. Tempos de humilhação suprema dos concorrentes, que já entravam praticamente derrotados. Em 1986, por exemplo, a Porsche fez os sete primeiros colocados e tinha nove de seus bólidos no top 10 – três 962C, quatro 956, um 936 e um 961. Um massacre.

Tamanha demonstração de força não intimidava os britânicos, que com seus XJR-8 haviam chegado ao topo do pódio em todas as quatro primeiras provas do World Sportscar Championship de 1987, mas Le Mans era, além do maior desafio do campeonato, o cume da montanha. Ganhar lá era a glória suprema e a Jaguar não estava muito habituada a comemorar conquistas na clássica prova francesa. A bem verdade, os carros verdes dominaram em meados dos anos 1950, com quatro vitórias entre 1953 e 1957, com os modelos C-Type e D-Type, que entraram igualmente para a história por serem os primeiros bólidos de competição dotados de freios a disco. Uma imensa contribuição do automobilismo para a indústria dos veículos de passeio.

Feito este nariz de cera, vamos ao desafio da 5ª etapa do campeonato.

O Automobile Club de l’Ouest (ACO) recebeu no total 63 pedidos de participação na prova de 1987, marcada para 13 e 14 de junho. Foram selecionados 50 carros – 51, na verdade, pois a Mazda inscreveu um chassis reserva, sendo 27 protótipos do Grupo C1, 20 da classe C2 e quatro da IMSA GTP, incluindo esse carro com o dorsal #201T.

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O esquadrão Porsche oficial de fábrica tinha três 962C (um ficou de fora) e um 961, inscrito na classe IMSA GTP

A Porsche levou três carros para Le Mans: o #17 para Hans-Joachim Stuck/Derek Bell/Al Holbert, o #18 de Jochen Mass/Bob Wollek e o #19 para Kees Nierop/Vern Schuppan, que logo sofreu um acidente durante os treinos de preparação, seguido de incêndio, e não pôde largar. Do seu lado, a Jaguar tinha três chassis XJR-8 LM, com a mesma configuração experimentada nos 1000 km de Silverstone no carro entregue para Martin Brundle e John Nielsen naquela oportunidade.

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Invicta nas quatro primeiras provas, a Jaguar se preparou para tentar a primeira vitória em 30 anos na clássica prova francesa e também inscreveu três XJR-8 LM

Raul Boesel estreava em Sarthe a bordo do carro #4, que dividiria com Eddie Cheever e com Jan Lammers, se necessário fosse. O holandês estava também inscrito no #5 junto a John Watson e ao australiano Win Percy, amigo de longa data de Tom Walkinshaw e que dividira com ele a equipe Jaguar no Europeu de Turismo, alguns anos antes. No carro #6 estariam Martin Brundle/John Nielsen. Armin Hahne ficou como piloto reserva, mas não foi solicitado.

Além de um sem-número de Porsches 962C de times clientes, a lista de inscritos ainda apresentava três Sauber-Mercedes C8 – a equipe oficial tinha Mike Thackwell/Henri Pescarolo/Hideki Okada num carro e ninguém menos que Chip Ganassi repartindo o #62 com Johnny Dumfries e Mike Thackwell, também inscrito neste protótipo.

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Alan Jones (segundo agachado e encostado no carro #36) era um dos destaques da Toyota

E, como sempre, os japoneses compareciam em bom número. Havia três Nissan construídos sob chassis da britânica March e dois protótipos Toyota 87C feitos pela Dome, contando inclusive com a presença do campeão mundial de Fórmula 1 em 1980, Alan Jones, que acabara de sair novamente da categoria após disputar o campeonato pela Force-Haas com um Lola. Sem contar a Mazda, que trazia seu modelo 757 dotado de motor com pistões Wankel rotativos para duelar com o solitário Porsche 961 na IMSA GTP.

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Os dois carros da equipe Primagaz Competition eram candidatos a zebras na edição de 1987 das 24 Horas de Le Mans

Correndo por fora, estavam os modelos franceses Cougar (com motor Porsche), Rondeau e WM Secateva – este com uma aerodinâmica arrojada e dotado de motor Peugeot PRV V6 Turbo.

No grupo C2, que tinha um bom plantel de inscritos e cuja disputa pela liderança do campeonato era férrea e aberta entre a Ecurie Ecosse e a Spice Engineering, havia nada menos que 10 diferentes construtores de chassis, outro tanto de opções de motores e algumas soluções bem interessantes. Como a do Chevron B36 da equipe de José Thibault, com carenagem integral nas rodas… dianteiras.

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Bob Wollek conquistou a pole position para a edição de 1987 das 24 Horas de Le Mans

Nos treinos classificatórios, realizados como é habitual em Sarthe em três sessões ao longo de dois dias – quarta e quinta-feira – “Brilliant” Bob Wollek mostrou todos os seus dotes de velocista. E levou o Porsche #18 à pole position com o tempo de 3’21″09, numa época em que o retão Les Hunaudiéres ainda não era cortado por duas chicanes – é bom lembrar. Hans Stuck não ficou muito longe e cravou 3’21″13, deixando os dois carros pintados nas cores da Rothmans com 1-2 no grid.

Com o forfait do #19, o Jaguar #4 de Boesel/Cheever/Lammers ficou imediatamente com a 3ª posição – 3’24″36, seguido pelos outros dois bólidos do construtor britânico. A boa surpresa foi o Cougar C20 Porsche da equipe Primagaz Competition, que ficou com o sexto tempo, melhor que todos os Porsche 962C de times semi-oficiais e que os Sauber-Mercedes, sem contar Nissan, Mazda e Toyota.

No dia da corrida, o tempo amanheceu nublado, um clima típico da Grã-Bretanha. Horas antes chegou a chover, a pista estava úmida e existia o risco da disputa ser marcada pela pista molhada, o que poderia representar um perigo a mais aos pilotos dos 48 carros aptos a dar a largada às 15h locais no dia 13 de junho.

Baixada a bandeira bleu-blanc-rouge da França, Hans-Joachim Stuck disparou na frente, seguido por Jochen Mass e por dois dos Jaguar. O #6, com Martin Brundle, foi escalado com o objetivo de botar um “calor” nos Porsches, cansar os alemães e abrir o caminho para a vitória do time britânico após 30 anos de jejum. O carro #4 vinha em quarto, seguido primeiro pelo Cougar C20 e depois por um dos Kouros Mercedes, mais conhecidos como Sauber C8.

A pista secou e logo os pilotos buscaram os boxes para a troca dos pneus intermediários e/ou de chuva para slicks. Jochen Mass chegou a ocupar a dianteira por instantes, mas uma trajetória mais aberta de curva permitiu tanto a ultrapassagem de Stuck quanto de Brundle. O início da corrida foi ruim para várias equipes: a Joest Racing e a Kremer, queixosas mais uma vez quanto à baixa octanagem da gasolina fornecida pelos organizadores das 24 Horas de Le Mans, viram seus carros pararem logo no início – todos com os motores estourados.

Aliás, a primeira parte da corrida marcou uma quebradeira incrível: nada menos que 25% dos inscritos desistiram pelos mais variados motivos. Talvez o mais constrangedor tenha sido do Toyota 87C de Jones/Elgh/Lees, que ficou sem combustível. Quando a gente diz que Toyota e Le Mans não combinam mesmo…

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A Porsche confiou no talento da trinca do #17 e Hans-Joachim Stuck/Derek Bell/Al Holbert foram simplesmente impecáveis ao longo da disputa

O duelo Jaguar-Porsche ficou muito desigual nesse interregno, pois com apenas 16 voltas completadas, o motor do 962C de Mass/Wollek mandou uma biela pro espaço, provavelmente voando até hoje. Enquanto a TWR ficou com três carros, os comandados de Norbert Singer tinham um. Que remédio: o jeito era lutar, como sempre a turma de Weissach fez e Stuck/Bell/Holbert foram brilhantes como se esperava que fossem.

A torcida britânica, em grande número nas arquibancadas de Sarthe, se empolga e considera possível finalmente uma vitória diante da Porsche em Le Mans. Mas quem dá sinais de fraqueza é justamente a Jaguar: na sexta hora de corrida, o carro #4 de Raul Boesel/Eddie Cheever cai para quinto em virtude de uma falha no acelerador. Naquele momento, o 962C não-oficial guiado por Pierre Yver/Bernard De Dryver/Jürgen Lässig, já desponta na quarta posição, atrás dos outros dois Jaguar XJR-8 LM e do Porsche da Rothmans.

Chegando a mais ou menos 1/3 da disputa, outro competidor com possibilidades desiste: o Porsche 962 da Britten Lloyd Racing conduzido por Jonathan Palmer/Price Cobb/James Weaver sofre um acidente, seguido de incêndio. Não é o maior drama da corrida, que acontece por volta da 11ª hora, em meio à madrugada.

Guiando o carro #5, o australiano Win Percy perde o controle e bate violentamente com o Jaguar XJR-8 LM num guard-rail. No impacto, Percy sofre fratura num dos braços. O incidente faz com que a direção de prova lance mão do Safety Car e é um período puxado para todos os que ficaram na pista.

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Após quase dormir dentro do carro durante um Safety Car longo e encher o capacete de socos, Raul Boesel e seus parceiros Eddie Cheever e Jan Lammers se atrasaram por conta de um problema de transmissão em seu carro

Raul Boesel estava a bordo do #4 e tem uma história daquelas pra contar. O brasileiro diz que, por conta do ritmo lento a bordo de seu protótipo atrás do carro de segurança – que ficou por 1h10min andando na pista, chegou a sentir sono em meio à madrugada e ao breu de Le Mans. Para acordar, disse o piloto, o jeito era encher o próprio capacete de porrada. Soco nele, Raul!

Quando a prova foi reiniciada em seu ritmo normal, o Porsche #17 de Bell/Stuck/Holbert ainda está na calha, seguido do Jaguar de Brundle/Nielsen e pelo carro de Boesel/Cheever, este uma volta atrasado e já com Jan Lammers para ajudar em qualquer eventualidade. O Cougar C20 Porsche inscrito com o prosaico número #13 superou o Porsche #72 – os dois carros eram da mesma equipe, mas estavam bem atrasados em relação aos três primeiros.

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Após uma luta de igual pra igual com a Porsche, o Jaguar #6 de John Nielsen/Martin Brundle abandona em razão de um problema de motor

Amanhece e um novo sinal de fraqueza é emitido pelos Jaguar, já que o carro #6 de Brundle/Nielsen se entrega perto da 16ª hora. Uma junta queimada no cabeçote do motor V12 significa o fim de uma férrea luta, que deixa de existir de vez quando o #4 de Boesel/Cheever e agora também de Lammers perde várias voltas na garagem com uma falha na transmissão. Foram 30 voltas perdidas e toda a chance de vencer a corrida depois de um longo tempo de espera.

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A Primagaz Competition comemorou um surpreendente 2º lugar com este Porsche e ainda teve um protótipo Cougar C20 no pódio. Melhor, só vencendo…

Com quinze voltas de avanço sobre o 2º colocado, o Porsche 962C de Bell/Stuck/Holbert limita-se a cumprir a corrida até o final, sem forçar e sem nenhum sobressalto. Os bólidos da Primagaz também não estão tão saudáveis e se atrasam: o #72 de Yver/De Dryver/Lässig aguenta um pouco mais firme, mas o #13 da trinca Pierre-Henri Raphanel/Yves Courage/Hervé Regout se segura como pode apesar de uma falha no eixo cardã. Sorte que o Porsche #11 da Kremer tripulado por Wayne Taylor/George Fouché/Franz Konrad não está tão próximo.

Ao fim das 24 Horas de disputa, o carro vencedor cruza a linha final percorrendo 354 voltas e pouco mais de 4.791 km pelo circuito de 13,535 km de extensão. A Primagaz Competition comemora muito o resultado, com seus dois carros no pódio. E para a Jaguar, restou uma tromba daquelas, uma frustração que só seria aplacada no ano seguinte.

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O agressivo Spice SE86C Fiero, que apesar dos adesivos GM corria com motor Ford Cosworth DFL venceu a prova no grupo C2, chegando em 6º lugar na geral

Um dos Mazda 757 cumpriu a prova com galhardia e foi o único IMSA GTP a terminar: Mark Galvin/Pierre Dieudonné/David Kennedy terminaram em sétimo lugar na geral, logo atrás do Spice vencedor na divisão C2, num ótimo resultado para Gordon Spice/Fermin Velez/Philippe De Henning, que fecharam a disputa 13 voltas à frente do Ecosse de David Leslie/Marc Duez/Ray Mallock.

Com a vitória, Stuck/Bell dispararam para 74 pontos na classificação do World Sportscar Championship, enquanto Raul Boesel ficava com 60. Mas era só a primeira metade do campeonato chegando ao fim e ainda havia muita água pra rolar debaixo da ponte.

Próximo post: Norisring.

Comentários

  • Como eram lindos esses protótipos dessa época. Os F1 da época também. De umas linhas das mais lindas que vi até hoje. WEC e F1 de hoje em dia podem ser tecnologicamente superiores, mas são muito mais feios, tudo hoje em dia parece meio sem graça….

  • Sempre gostei muito das pinturas dos carros dessa época, tanto dos protótipos quanto da Nascar. Era bater o olho e você não esquecia mais que carro era e quem pilotava, autênticas pinturas de corrida.

    Hoje os carros parecem simplesmente propagandas ambulantes, fáceis de esquecer. Dá pra sentir a diferença quando Nascar faz throwback.

    Os estímulos às sensações mais básicas do ser humano é, para mim, o que primeiramente e mais intensamente causa atração para algo. No caso do automobilismo, o aspecto visual e sonoro, mas hoje em é tudo muito “funcional” beirando o “robótico”.

    • Gilmar

      Eu acredito que com os altos custos de hoje em dia e as empresas investindo cada vez menos em propaganda, tem que transformar o carro numa verdadeira páginas amarelas…