Discos eternos – Escolas de Samba do Grupo 1-A (1982)

1982

RIO DE JANEIRO – Quase todo mundo do meio do esporte tem um quê de “entendido” de Carnaval. Não à toa, com uma ou outra exceção, até nas transmissões da televisão, os âncoras são jornalistas esportivos e alguns dos repórteres do mètier são apaixonados pela matéria. Como nunca tive a oportunidade de opinar com o microfone, dou meus pitacos nas redes sociais. E quem me conhece, sabe que eu curto de montão a época momesca.

Às vezes fico frustrado – principalmente com a fase da Imperatriz Leopoldinense, minha escola de coração – e com no que a LIESA, a Liga Independente das Escolas de Samba, tem conseguido fazer com o carnaval carioca, numa incompetência administrativa de fazer corar qualquer outro dirigente do futebol e até do automobilismo, promovendo duas vergonhosas viradas de mesa. A última então foi de um absurdo sem igual, para beneficiar a Grande Rio. Mas isso não vem ao caso, até porque o assunto deste post é bem mais agradável: o disco de sambas-enredo de 1982.

E por que? Não só por ter registrado algumas das obras-primas da história do gênero como também ter sido um dos anos em que o desfile da Marquês de Sapucaí atingiu seu auge de comunicação com o público, que comprava os discos editados pela extinta gravadora Top Tape como água.

Samba e Carnaval eram assunto meses antes do desfile propriamente dito.

Com a venda dos bolachões, que naqueles tempos atingiam números expressivos, a massiva divulgação em rádios (Adelzon Alves, o “Amigo da Madrugada”, era um ferrenho defensor do samba) e programas de televisão como o “Cassino do Chacrinha”, afora uma maior variedade de emissoras envolvidas na transmissão do evento, o Carnaval era muito consumido pelo público – que em comparação aos dias de hoje tinha melhores possibilidades de assistir ao espetáculo ao vivo, leia-se ingressos mais baratos – e olha que estávamos em tempos de maxidesvalorização da moeda e inflação acima de 10% ao mês.

Lembro também que o desfile era numa única noite. Começava no domingo e terminava na segunda-feira, quase ao meio-dia. A maioria não arredava pé e aguentava firme, estoicamente, mais de 12h sentadas ou em pé nas arquibancadas de madeira que eram montadas e desmontadas – ano após ano – sem contar camarotes, cadeiras e quejandos.

E também os sambas-enredo eram muito diferentes das obras que se ouvem (ou não, porque tudo mudou) hoje. Até que a safra do Rio de Janeiro em 2018 tinha sambas bons. Mas há trinta e seis anos atrás, você pegava um disco com 12 faixas e raramente havia uma muito ruim. No mínimo, um samba fraco, alguns razoáveis, vários ótimos e diversos atingindo o status de obra-prima.

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A Imperatriz fez um desfile luxuoso, o bonito samba deu conta do recado, mas o tricampeonato foi desperdiçado porque o carnavalesco Arlindo Rodrigues e a escola ignoraram o regulamento

O LP de 1982 abriu com a então bicampeã Imperatriz Leopoldinense. O enredo de Arlindo Rodrigues intitulado “Onde canta o sabiá” (com inspiração no poema “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias) ganhou um bom samba de Dominguinhos do Estácio, Darci do Nascimento e Tuninho Professor, defendido pela trinca na avenida e no disco por Dominguinhos, que chegaria ao seu quarto e último carnaval no primeiro período em que defendeu a Rainha de Ramos.

Na gravação, o samba ficou um tanto quanto acelerado, mas na avenida a bateria dos Mestres Paulinho e Beto segurou o ritmo com grande competência e o naipe de tamborins – uma característica da escola naqueles tempos – falando alto. O destaque, além da excelente interpretação de Dominguinhos, é a melodia do samba, de letra animada, pra cima e com uma curiosidade – em tempos que “Sapucaí” começava a ser lugar comum em letras, os compositores lançaram mão do ótimo “No palco da raiz” para fechar a última estrofe. Uma solução bonita e criativa.

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Com uma homenagem a Lima Barreto, a Unidos da Tijuca apresentou um dos melhores sambas da safra de 1982

A segunda faixa é uma das primeiras obras-primas do disco. É “Lima Barreto, mulato pobre, mas livre”, enredo da Unidos da Tijuca, que em matéria de sambas-enredo esteve muitíssimo bem-servida no período entre 1980/1983, a exemplo da Imperatriz. O samba era de um único autor – Adriano – e tinha uma curiosidade: não possuía refrão do meio, comum às obras do gênero, deixando para o final da letra.

Apesar do tema tristíssimo, a letra é esplêndida e a interpretação do grande Sobrinho valoriza ainda mais a obra da escola do Morro do Borel. Este foi o último trabalho de Renato Lage, hoje tido como um dos gênios do Carnaval carioca, na Unidos da Tijuca. Ele já assinara o campeão do Grupo 1-B de 1980, “Delmiro Gouveia” e o crítico “Mitavaí versus Macobeba (O que dá pra rir, dá pra chorar)”, de 1981.

Fernando Pinto já era um carnavalesco consagrado, com título no Império Serrano em 1972 – ainda teria tempo de mostrar toda a sua genialidade na Mocidade Independente antes de partir, precocemente, num acidente automobilístico. E antes disso, teve uma passagem pela Estação Primeira de Mangueira, da qual poucos se recordam. É dele o enredo “As mil e uma noites cariocas”.

O samba da Manga era de autoria de um trio da pesada: Tolito, Heraldo Faria e Flavinho Machado – que bota a voz na gravação, já que o fantástico Jamelão era proibido pela sua gravadora de então (não estou certo se a Tapecar ou a Copacabana) de gravar a faixa no LP, o que só aconteceria pela primeira vez em 1986. O que, convenhamos, não muda a agradabilíssima impressão que se tem ao ouvir a obra da verde-e-rosa, com sua característica batida de “surdo um”.

A quarta faixa já não é das mais queridas pelos que ouviram a safra de 1982. “No reino do faz de conta” foi o enredo dos Acadêmicos do Salgueiro para aquele ano, dos carnavalescos José Félix e Geraldo Sobreira. Eram tempos de vacas magérrimas para a agremiação cuja quadra hoje é uma da mais badaladas do Rio, mas lembremos que o Sal não ganhava nada desde que Osmar Valença, o então presidente, expulsou de uma só vez o diretor Laíla e o carnavalesco Joãozinho Trinta, bicampeões em 74/75.

Desde então, a vermelho e branco da Tijuca vinha numa pindaíba não só de grana como de resultados e a julgar pelo samba de César Veneno e Zé Di, não seria dessa vez. Zé foi um dos autores do lendário samba “O Rei de França na Ilha da Assombração” e assumiu o microfone na gravação. Teria sido melhor se não fosse assim: apesar do timbre vocal muito parecido com Rico Medeiros, que já despontava como a voz principal do Salgueiro, o paulista de Mogi-Mirim mandou um tenebroso “Cossssshe dos Leões” no refrão de um samba apenas animado e de letra um tanto quanto confusa.

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A querida União da Ilha imortalizou o samba de Didi e Mestrinho: “É hoje!” tornou-se um marco e um símbolo da alegria e descontração da agremiação tricolor

Enquanto a obra salgueirense ficou no limbo, “É hoje!”, da querida União da Ilha do Governador, que tinha Max Lopes como seu carnavalesco, transcendeu o tempo e transformou-se num clássico imortal.

Até hoje executada em qualquer baile de Carnaval ou em blocos de embalo, o samba de Didi e Mestrinho também merece o status de obra-prima. Não apenas por ter sobrevivido ao longo de tantos anos mas também por definir o estilo alegre, descontraído e alto astral da agremiação insulana. Sem contar o genial e saudoso Aroldo Melodia dando seu toque pessoal à gravação de uma música definitiva da história do carnaval brasileiro.

“Onde há rede, há renda”, do carnavalesco Edison Ferreira, foi o enredo da Unidos de São Carlos – hoje Estácio de Sá. O berço do samba apresentou um samba razoável, com a característica voz do cigano Abílio Martins, que emprestava seu gogó a diversas agremiações. Inclusive naquele ano ele gravou o espetacular “Lua Viajante”, da Unidos de Lucas, o melhor samba (minha opinião) do Grupo 1-B. A letra dos autores Caruso e Djalma Branco, que fizeram e ainda fariam coisas melhores em suas trajetórias, é até simplória, mas de refrão do meio bastante interessante.

Wilson Bombeiro, Carlinhos Bagunça e Joel Menezes foram os autores da obra da Beija-Flor para 1982. “O olho azul da Serpente” era uma aposta da agremiação de Nilópolis e de Joãozinho Trinta, badalado como o gênio absoluto do carnaval por conta de seu pentacampeonato pessoal entre 74/78, sem contar o título dividido com Imperatriz e Portela em 1980, que fazia dele o artista a ser batido por todos os outros carnavalescos.

A faixa que abre o lado B do antigo bolachão já traz – além da perene voz de Neguinho da Beija-Flor, hoje o único intérprete há mais de 40 anos na avenida – uma característica que se tornou comum aos sambas da escola da Baixada Fluminense: estrutura de duas partes longas e melodia pesada. Enredo e samba que fugiam do padrão Joãozinho Trinta de brincar com o imaginário e que homenageou a cultura do Nordeste do país. Um bom samba, mas muito longe do que a Beija já fizera não muito tempo antes.

Partindo de ideia do gênio Fernando Pamplona, Maria Carmem de Souza assinou “O Velho Chico”, enredo da Mocidade Independente de Padre Miguel alusivo ao Rio São Francisco, patrimônio da natureza no Brasil. Com a marcante voz do inesquecível Ney Vianna, a obra de Edu, Da Roça, Adil e Dico da Viola está sem dúvida entre os melhores sambas da história da verde e branco da Zona Oeste, embora raramente seja lembrado pelos Independentes como uma obra de relevância.

De belíssima letra descritiva, o samba ganhou no disco uma gravação mais acelerada, mas na avenida, a inconfundível cadência da Bateria “Não Existe Mais Quente”, então comandada por Mestre Cinco (ex-Portela) após a morte de Mestre André, deixou a obra ainda melhor e agradável aos ouvidos. Samba-Enredo pura e simplesmente.

“Noel Rosa e os poetas da Vila nas batalhas do Boulevard” foi mais um dos sambas “assim-assim” daquela safra de 1982. O enredo da Unidos de Vila Isabel, de autoria de Viriato Ferreira, certamente merecia coisa muito melhor. Aliás, Martinho da Vila estava na final com uma obra de sua autoria, coassinada com Luiz Carlos da Vila – e acabou, numa decisão polêmica, preterido pela letra de J. Albertino.

Na abertura da gravação, Marcos Moran manda ‘tirar o tapete da sala’, mas nem o carisma do intérprete salva uma obra que caiu no esquecimento. O samba eliminado foi gravado pelo saudoso Luiz Carlos da Vila (com óbvia participação de Martinho) com novo nome: “Vila Isabel, anos trinta”.

David Corrêa e seu parceiro Jorge Macedo seguiam impossíveis e imbatíveis nas concorridas disputas na Portela, sacramentando para o enredo “Meu Brasil Brasileiro”, assinado por Edmundo Braga e Paulino Espírito Santo (cujo autor era Viriato Ferreira, aliás e a propósito), um estilo inconfundível de construção de letra, de melodia e principalmente de interpretação.

Mas a escola de maior torcida do Carnaval do Rio de Janeiro pagava à época um preço muito alto pelas escolhas da diretoria comandada pelo polêmico Carlos Jorge Martins, o Carlinhos Maracanã. Parte da ala de compositores torcia o nariz para o domínio da parceria de David Corrêa e antes disso a escola já vivia às turras por ter aceito Jair Amorim e Evaldo Gouvêa como autores de sambas enredo campeões e até a interferência de Carlos Imperial na escolha do hino de 1970.

Os problemas políticos na azul e branco de Madureira se avolumariam de tal forma que Nésio Nascimento, filho do lendário Natal, se rebelaria para formar uma dissidência que chegou a ser batizada Portela Tradição – mas que, para poder sobreviver, teve que ser registrada apenas como Tradição. Mas isso já é outra história…

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O enredo “Bum Bum Paticumbum Prugurundum” foi um marco. Samba e apresentação inesquecíveis do Império Serrano. Rosa Magalhães e Lícia Lacerda criticaram o gigantismo para o qual o Carnaval do Rio de Janeiro começava a rumar (Foto: Aníbal Philot/Ag. O Globo)

O samba da Portela antecedia no disco ao da coirmã Império Serrano – esse sim, inesquecível, ao nível da obra insulana descrita linhas acima. O sensacional enredo “Bum Bum Paticumbum Prugurundum”, das carnavalescas Rosa Magalhães e Lícia Lacerda, que naqueles tempos metia o dedo na ferida e valorizava um Carnaval que já não existia e era tragado pelas “Super Escolas de Samba S/A” (nada mudou, infelizmente, desde então), ganhou um sambaço-aço-aço de Beto Sem Braço e Aluísio Machado.

Muito bem defendido por Quinzinho, que se revezava entre a escola da Serrinha e a Acadêmicos de Santa Cruz no Grupo 1-B, o samba caiu no gosto do povão. Era tão executado nas rádios quanto o “É hoje!” da União da Ilha e até Carlos Drummond de Andrade escreveu crônica na época. Publicado no Jornal do Brasil, o texto chamava o samba de “formidável onomatopeia”.

Até hoje lembrado, o hino imperiano levantou até defunto numa Sapucaí que fervia na hora em que a verde e branco pisou na avenida.

Fazia um calor de rachar catedrais (37 graus à sombra no dia 22 de fevereiro de 1982) e quem ficou na avenida para assistir à passagem do Império não se arrependeu. Além de um espetáculo maravilhoso para os olhos, naquele dia o samba cresceu e construiu seu apogeu, sendo um dos fatores decisivos – senão o mais decisivo de todos – para o último título do Império na elite do Carnaval do Rio de Janeiro.

Fechando o álbum, um grande samba do Império da Tijuca, que voltava ao Grupo 1-A após cinco anos ausente com “Iara, Ouro e Pinhão na terra da gralha azul”, homenageando o estado do Paraná e suas origens. A bela obra de Jorge Melodia foi extremamente valorizada pela interpretação de Almir Saint-Clair, de timbre grave e marcante. Uma pena que a escola do Morro da Formiga não tivesse as mesmas condições que as demais concorrentes para brigar por posições melhores.

Num Carnaval marcado não só por belos sambas como também por uma polêmica decisão da Riotur, então organizadora da festa, em proibir figuras vivas nas alegorias, o título foi merecidamente conquistado pelo Império Serrano e seu desfile histórico que encerrou a festa daquele ano de 1982, com a Portela vice-campeã. Madureira festejou. E não foi pouco, não…

A Imperatriz, que gastou os tubos – dizem que Luizinho Drumond investiu tanto ou mais que as onze outras escolas juntas – perdeu o tricampeonato por um capricho de Arlindo Rodrigues, que insistiu nas figuras vivas nas alegorias, perdendo seis pontos (três por jurado) de acordo com o regulamento, no quesito de alegorias e adereços. Não fossem os descontos, e outra verde e branco teria comemorado o título, já que somou 189 pontos e acabou com 183…

Não foi a única: a Beija-Flor teria feito 185 pontos e terminaria em 3º lugar junto à Portela, mas acabou mesmo em sexto, atrás da Mangueira e da União da Ilha. A Unidos de São Carlos também pôs destaques em suas alegorias, mas isso não alterou o índice NASDAQ, pois a escola seria irremediavelmente rebaixada ao Grupo 1-B em último lugar, tal qual o Império da Tijuca, penúltimo. Nas demais posições de sétimo a décimo terminaram Mocidade, Salgueiro, Unidos da Tijuca e Vila.

Ficha técnica do álbum Escolas de Samba do Grupo 1-A (1982)
Selo: Top Tape
Produção de Laíla, Genaro Soalheiro e Zacarias Siqueira de Oliveira
Gravado em 1981

Músicas:

1. “Onde canta o sabiá” (Dominguinhos do Estácio/Darci do Nascimento/Tuninho Professor)
G.R.E.S Imperatriz Leopoldinense
Intérprete: Dominguinhos do Estácio

2. “Lima Barreto, mulato pobre, mas livre” (Adriano)
G.R.E.S Unidos da Tijuca
Intérprete: Sobrinho

3. “As mil e uma noites cariocas” (Tolito/Heraldo Faria/Flavinho Machado)
G.R.E.S Estação Primeira de Mangueira
Intérpete: Flavinho Machado

4. “No reino do faz de conta” (César Veneno/Zé Di)
G.R.E.S Acadêmicos do Salgueiro
Intérprete: Zé Di

5. “É hoje!” (Didi/Mestrinho)
G.R.E.S União da Ilha do Governador
Intérprete: Aroldo Melodia

6. “Onde há rede, há renda” (Caruso/Djalma Branco)
G.R.E.S Unidos de São Carlos
Intérprete: Abílio Martins

7. “O olho azul da serpente” (Wilson Bombeiro/Carlinhos Bagunça/Joel Menezes)
G.R.E.S Beija-Flor de Nilópolis
Intérprete: Neguinho da Beija-Flor

8. “O Velho Chico” (Da Roça/Edu/Adil/Dico da Viola)
G.R.E.S Mocidade Independente de Padre Miguel
Intérprete: Ney Vianna

9. “Noel Rosa e os poetas da Vila nas batalhas do Boulevard” (J. Albertino)
G.R.E.S Unidos de Vila Isabel
Intérprete: Marcos Moran

10. “Meu Brasil Brasileiro” (David Corrêa/Jorge Macedo)
G.R.E.S Portela
Intérprete: David Corrêa

11. “Bum Bum Paticumbum Prugurundum” (Beto Sem Braço/Aluísio Machado)
G.R.E.S Império Serrano
Intérprete: Quinzinho

12. “Iara, Ouro e Pinhão na terra da gralha azul” (Jorge Melodia)
G.R.E.S.E Império da Tijuca
Intérprete: Almir Saint-Clair

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