30 anos de Senna, parte XV – GP do Japão

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Largada do GP do Japão: com problemas de embreagem, Senna sai em 3ª marcha e é ultrapassado por vários carros. O que poucos imaginavam é que começava assim uma das maiores exibições da carreira do piloto brasileiro

RIO DE JANEIRO – Eis que o Campeonato Mundial de Fórmula 1 da temporada 1988 poderia ser definido no Japão, terra da Honda. Era tudo o que os japoneses sonhavam, mas faltava saber se Alain Prost teria condições de derrotar Ayrton Senna e adiar a disputa até Adelaide, que sediaria a última etapa. O brasileiro, com vitória, chegaria enfim ao tão sonhado título – aos 28 anos de idade.

Após as pesadas críticas de Prost, que se acentuaram após o GP da Itália, o engenheiro-chefe de motores do fabricante, Osamu Goto, resolveu pôr os pingos nos “is”. Com o respaldo da armada de técnicos da Honda, fez questão de afirmar que os dois pilotos da McLaren teriam equidade de tratamento na penúltima etapa do campeonato.

Senna não entendia como o computador de bordo de sua McLaren informava “graves problemas de consumo”, nas palavras dele, quando na verdade não houve nada em Portugal e na Espanha, seu carro não estava bom o bastante. Mas o brasileiro, insatisfeito, se debruçava nos gráficos de telemetria tentando entender como e porque as coisas vinham dando errado.

Novamente o sinistro Balestre entrou em ação (talvez começando a pôr as manguinhas de fora?), com uma carta enviada à Honda, cujo teor foi revelado ao mundo pelo jornal francês L’Équipe. O envio da missiva foi malvisto pela McLaren e Gordon Murray vociferou contra o dirigente.

“Sua carta é ridícula!”, exclamou Gordon. “Esse tipo de suspeita é indigno vindo de alguém que conhece a Fórmula 1. É uma falta de respeito aos esforços da Honda”, completou o engenheiro.

Ayrton Senna não deixou por menos. “Balestre é um político, não um engenheiro. O que ele sabe de e sobre motores? Nada. Sua intervenção é absurda. Que todos cuidem de seus negócios!”, finalizou o brasileiro.

O presidente da FIA e FISA tentou se esquivar de polêmicas, mas o estrago já estava feito. “Não estou acusando ninguém. Eu simplesmente quero preservar a imagem do nosso esporte, que eu quero saudável”.

O discurso mudaria de forma diametralmente oposta nos anos seguintes, como todos sabemos…

No paddock, a novidade absoluta foi a volta da Brabham, confirmada para a temporada de 1989. Um consórcio formado por Joachim Lüthi, Peter Windsor, David Phipps e o golfista Greg Norman tomaria as rédeas da escuderia que foi de Bernie Ecclestone de 1971 até 1987. Yannick Dalmas, nocauteado pela chamada “Doença do Legionário”, não disputou o GP do Japão. Após tentar – sem sucesso – contratar Roberto Pupo Moreno e Martin Brundle, Jean-Louis Schlesser (que recusou o convite) e Olivier Grouillard, que já negociava sua passagem à Fórmula 1 pela Ligier, o escolhido por Gérard Larrousse foi Aguri Suzuki, japonês que faria sua estreia a tempo pleno pela Zakspeed no ano seguinte.

A pista de Suzuka, que ingressara no calendário exatamente em 1987, quando Nelson Piquet foi campeão no mesmo dia 30 de outubro em que poderia ser definido outro campeonato, era agressiva com pneus e principalmente freios. Outro item importante agregaria um molho à disputa: o consumo de combustível elevado poderia ser um fator chave numa disputa de título.

Nos treinos, o clima mudou de um dia pra outro: na sexta-feira, com algum sol, Gabriele Tarquini conseguiu a façanha de destruir seus dois carros da Coloni. E botou a culpa por não avançar na pré-qualificação em Roberto Pupo Moreno, que já treinava com o time. “Ele regulou esses carros – que por sinal estão inguiáveis!”, queixava-se. Sábado, o tempo estava nublado e a ameaça de chuva pairava o ambiente. Mas Ayrton Senna nem ligou: fez a 28ª pole da carreira, décima-terceira do ano de 1988, com a marca de 1’41″853, três décimos melhor que Prost.

Na segunda fila, ficaram Gerhard Berger e Ivan Capelli, seguidos pelas Lotus com Nelson Piquet e Satoru Nakajima. Juntaram-se a Tarquini no grupo dos eliminados do GP do Japão os pilotos Stefan Johansson, Stefano Modena, Oscar Larrauri e Piercarlo Ghinzani.

Apesar do céu cinza-chumbo ameaçador, mais de 120 mil espectadores compareceram ao circuito de Suzuka para acompanhar in loco a corrida. No total, os organizadores contabilizavam a venda de 260 mil ingressos nos três dias da programação – um sucesso tremendo.

Sempre um momento de tensão, a largada foi marcada por um autêntico anticlimax.

Com problemas de embreagem, Senna parte, mas o carro apenas rola alguns metros. Ele ergue os dois braços e começa a ser ultrapassado por vários adversários.

Tenta fazer sua McLaren pegar. Nada.

Sai em 3ª marcha, engasopando. Quando ganha velocidade, já se encontra muito atrás, em décimo-quarto.

Feroz, Ayrton ultrapassa vários adversários e ao fim da primeira volta está em oitavo, tendo passado, num único giro, Philippe Streiff, Jonathan Palmer, Andrea de Cesaris e Nelson Piquet – sem contar Derek Warwick e Nigel Mansell, que se estranharam e tiveram que passar pelos boxes.

Prost aproveita-se da situação e comanda a corrida seguido por Berger, Capelli, Alboreto, Boutsen e Nannini. Na terceira volta, Capelli já pressiona Berger e Ayrton, após livrar-se de Patrese e Nannini, encaminha a ultrapassagem sobre Thierry Boutsen.

Com cinco voltas, Senna já é quarto: depois de despachar o piloto da Benetton, surpreende Alboreto na freada da chicane que leva para a última curva e depois à reta dos boxes. Prost lidera com 3″2 sobre Berger e Capelli segue perto do austríaco da Ferrari.

A ultrapassagem parece questão de tempo e Capelli, no vácuo de Berger, faz a manobra com perfeição e supera o rival com relativa facilidade. Prost faz a melhor volta em 1’48″104.

O que parecia incrível acontece: o March #16 é mais rápido que a McLaren do líder e Ivan ensaia uma aproximação a Prost. Senna vai se aproximando de Berger, trazendo no encalço um Boutsen bastante incisivo ao volante de sua Benetton Ford DFR. Capelli faz a melhor volta em 1’47″375 e fica a meio segundo de Prost.

Na 13ª volta, uma leve garoa começa a cair no circuito de Suzuka. Quase todos os pilotos – exceto Senna e Boutsen – tiram o pé. Os dois já despacham Berger e o brasileiro se encontra na 3ª posição.

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Que fanfarrão, hein? De óculos à “Zé Bonitinho”, Ivan Capelli foi a sensação do GP do Japão nas primeiras 20 voltas, junto à estrondosa recuperação de Ayrton Senna

Então Capelli consegue o que muitos diziam ser impossível diante da diferença de performance entre motores turbo e aspirados naquele ano da graça de 1988. Aproveitando uma hesitação de Prost, o italiano passa na frente e lidera uma prova pela primeira vez na carreira. É também a primeira corrida em que um motor aspirado comanda um Grande Prêmio de Fórmula 1 – desde a vitória de Michele Alboreto no GP dos EUA em Detroit, no já distante ano de 1983.

Mas é por pouco tempo: a potência do Honda V6 Turbo prevalece e Prost volta de novo ao comando. Os dois líderes encontram tráfego e o italiano da March, após uma apresentação de gala, sai de cena após a 19ª volta. Há quem diga que ele não tinha combustível suficiente para chegar ao fim e que a atuação foi apenas um brilhareco para agradar o patrocinador, o financista japonês Akira Akagi, dono da Leyton House.

A chuva faz Prost tirar o pé – como sempre – e Senna, que descontava volta após volta a diferença em relação ao colega de equipe e único rival de fato naquele ano, se aproxima perigosamente. O brasileiro não deixa Alain descansar e nem a opção do francês em aumentar a pressão do turbo dá resultado. Exceto quando a chuva dá uma trégua e aí Prost vira rápido – 1’46″783.

Senna replica e vira a melhor volta em 1’46″577. Com 25 voltas, os dois estão separados por oito décimos, seguidos por Boutsen, Berger, Nannini, Riccardo Patrese, Satoru Nakajima e Eddie Cheever. À frente da dupla da McLaren, prestes a ser dobrados, estão o March de Maurício Gugelmin e a Rial do imprevisível Andrea de Cesaris, que vêm brigando pelo 12º lugar.

Prost sabe que de Cesaris é o chamado “carne de pescoço”. E hesita ao tentar a manobra de ultrapassagem na saída da chicane.

Era o que Ayrton Senna aguardava ansiosamente…

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O definitivo registro: Senna à frente de Prost após a 28ª volta. Dali para diante, ninguém seguraria Ayrton Senna da Silva

Vigésima-oitava volta: o brasileiro aproveita a presença dos dois retardatários e vislumbra a chance de superar Alain. Ayrton aproveita até o último metro de pista disponível para aspirar do vácuo do carro do francês. Com a turbulência gerada pela presença dos carros mais lentos, a McLaren de Senna se desequilibra num asfalto traiçoeiro. Mas o piloto mostra um grande “car control” e assume finalmente a liderança do GP do Japão.

Em dois giros, Senna abre um segundo e meio para Prost. Nada parece detê-lo. Ele faz a melhor volta em 1’46″326. Com uma determinação incrível, ele está a ponto de vencer a maior corrida de sua carreira. Resta levar até o final sem problemas e enfim comemorar o campeonato.

Faltando 15 voltas para a quadriculada, Ayrton mantém a vantagem, que oscila entre quatro segundos e um pouco mais do que isso. Mas a diferença baixa quando o líder pega pela proa um pouco colaborativo Satoru Nakajima, que mesmo com um carro ruim (só que com o mesmo motor Honda de Senna) oferece resistência e se recusa a deixar Senna passar. Prost se reaproxima, mas não parece ter como recuperar a dianteira.

A chuva reaparece a poucos quilômetros da quadriculada. A pista fica um sabão e Senna sinaliza pedindo bandeira quadriculada e o fim da disputa. Prerrogativa que a direção de prova, avaliando as condições, poderia tomar, uma vez que 75% da distância regulamentar já havia sido cumprida.

Perto do título, Ayrton garante ter tido uma visão divina, o que revelaria em entrevista (famosa e polêmica, por sinal) à Playboy em 1990 e também ao jornalista carioca Milton Coelho da Graça, d’O Globo. Comunista militante e certamente ateu, ouviu o seguinte do piloto.

“Hoje vi Deus. Eu nunca tive dúvida de sua existência. Mas hoje eu vi.”

Com visões ou não, certo é que após assumir a liderança, Ayrton guiou cada volta com perfeição. Bateu Prost no momento certo, na hora certa. E fez daquele 30 de outubro de 1988 um momento de consagração e completo êxtase naquela tarde japonesa de domingo – madrugada alta no Brasil, e que não deixou nenhum fã de automobilismo parado.

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Euforia: o dia 30 de outubro de 1988 consagra Senna o novo campeão mundial de Fórmula 1. O brasileiro de 28 anos exulta, ergue os dois braços e soca o ar, tendo como pano de fundo no Brasil a emocionada narração de Galvão Bueno

Após 1h33min26seg173, à média horária de 191,880 km/h, Ayrton Senna da Silva entrava para o panteão dos grandes da história da Fórmula 1. A emocionada narração de Galvão Bueno – uma aula de transmissão, justiça seja feita – deu o tom da festa, aqui coroada com o “Tema da Vitória”. E na pista, Senna se entregou ao pranto convulso e a uma explosão que só os que o conheciam sabiam que estava abafada na garganta.

Lá mesmo no circuito, após o título, o primeiro telefonema: Mr. Soichiro Honda, com entusiasmo e emoção, ligava para felicitar Senna pela conquista inédita. Era a primeira celebração de uma união que tinha tudo para dar certo pelos anos seguintes. Após o pódio e a festa da champagne, os três primeiros – Ayrton, Alain e Boutsen – se dirigiram à sala de coletivas.

E Senna não teve vergonha nenhuma de professar sua fé.

“Deus me fez vencer. É à sua graça que devo essa vitória e este título mundial. Ela (a graça divina) também me trouxe para Mônaco. Todos pensaram que eu tinha cometido um erro lá. Falso: foi uma coisa boa. Ela me fez mudar minha atitude. Mas ainda foi Deus quem me deu forças para competir nesta difícil e exigente temporada da minha carreira, física e moralmente”, afirmou o campeão.

Num ambiente geralmente mundano e hipócrita como o do automobilismo, as declarações de Senna poderiam ter soado mal. Mas todo mundo sabia que o que ele sentia era verdadeiro. A imprensa internacional finalmente se rendeu ao talento daquele rapaz nascido no bairro paulistano de Santana, que levava no capacete com orgulho indescritível as cores da bandeira do Brasil – por sinal, desde que Sid Mosca desenhara os capacetes da equipe brasileira para o Mundial de Kart – que o piloto jamais venceria.

Com o amarelo e faixas verde e azul, o capacete de Senna seria uma marca para todo o sempre no automobilismo.

E chegando ao total de 87 pontos válidos contra 84 de Alain Prost, que descartara um caminhão de segundos lugares, Senna podia enfim festejar. O placar de vitórias apontava 8 x 6 para o brasileiro.

Bora pra última – GP da Austrália.

Comentários

  • Mattar:
    Parabéns pelo texto e por fazer com que eu (e muitos outros) possa relembrar um momento tão incrível do automobilismo, esporte que tanto amamos. Nessa época, éramos felizes e sabíamos. O que não sabíamos é que jamais seríamos tão felizes como naqueles tempos, os incríveis anos 1980, de Senna e Piquet (e mais Prost, Mansell etc.).
    Muito obrigado e espero novas séries como essas.