Discos eternos – Krig-Ha, Bandolo! (1973)

RIO DE JANEIRO – Raul Seixas nos deixou em 1989, mas sua obra continua eterna. E é com o velho “Maluco Beleza” que eu começo uma sequência sobre discos eternos da música nacional e internacional. Mais precisamente com seu primeiro trabalho solo, de 1973: Krig-Ha, Bandolo!

É preciso primeiro voltar no tempo para saber como o baiano nascido em 1945 caiu no gosto popular. Fã de Elvis Presley desde criança e fundador do Elvis Rock Club em Salvador, com a carteirinha número #9, ele começou a ler livros de filosofia desde os doze anos de idade. Já nos anos 60, ele tinha ideias muito mais avançadas que os jovens do seu tempo. E era um dos únicos que comia, vivia e respirava rock and roll numa Bahia altamente provinciana.

Raul começou como crooner n’os Relâmpagos do Rock e depois no grupo intitulado The Panthers, que seria renomeado Raulzito e os Panteras, com direito a um disco gravado pela Odeon, que nunca decolou. Primeiro porque, quando o álbum saiu, em 1968, a Jovem Guarda já estava decadente, a Tropicália era o “movimento” do momento e ninguém queria saber de rock na Bahia.

Desgostoso, Raul fez as malas, foi para o Rio casado com Edith Wisner e tornou-se produtor na CBS. Enquanto cuidava de artistas como Jerry Adriani, Serguei (sim, ele mesmo!), Martinha, Leno e Maritza Fabiane, ele compunha suas canções que eram gravadas pelos remanescentes jovem-guardistas. Até virar o jogo e sua carreira pelo avesso, cometendo o disco Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta: Sessão das 10, de 1971. A mosca começava a zumbizar e perturbar o sono do sistema. Tanto que Raul, demitido da CBS, deixou de ser produtor para apostar numa carreira de artista.

O Festival Internacional da Canção de 1972 foi o turning point para o baiano, então com 27 anos. Ele se apresentou a Roberto Menescal, da Philips. E a gravadora dirigida por André Midani apostou prontamente nele e no falecido Sérgio Sampaio. Com “Let me sing, let me sing” e “Eu sou eu, Nicuri é o diabo”, dançando como Elvis Presley e xaxando como Luiz Gonzaga, Raul fez a ponte entre o rock e o baião, foi uma das sensações do festival e a Philips não hesitou em confiar a Marco Mazzola a produção do primeiro disco do cantor.

Krig-Ha, Bandolo! tem seu nome retirado de um grito de guerra do lendário Tarzan, cuja revista em quadrinhos era editada pela finada EBAL. Esse grito significa “Cuidado, aí vem o inimigo!”. Ou seja: Raul era o cara que vinha para abalar as estruturas e dar o seu recado, pôr para fora o que não conseguia dizer no tempo d’Os Panteras.

“Eu acho que aqui no Brasil existe uma mania muito grande de definir coisas. O problema não é definição. Inclusive houve uma certa confusão no início, um problema de situação, de me situar, se eu era um artista de classe A ou classe C. Isso é uma besteira danada. Na música eu quero atingir todas as estruturas. Por isso que minha música é fácil, é isso mesmo. É uma música de fácil comunicação, seria como que um invólucro para levar a minha mensagem e o que eu quero dizer. E eu não sou somente ‘Ouro de tolo'” (Raul Seixas, em trecho do documentário “Raul: o início, o fim e o meio”, dirigido por Walter Carvalho)

“Ouro de Tolo” é o primeiro sucesso nacional de Raul, lançado em compacto e alavancado por uma matéria exibida no Jornal Nacional, em horário nobre. Uma das muitas sacadas marqueteiras do baiano e do seu parceiro de cinco de dez composições do disco de estreia, Paulo Coelho, a quem Raul tinha como um intelectual, um místico e que, de fato, encaminhou o baiano para a doutrina de Aleister Crowley e para a criação da chamada “Sociedade Alternativa”.

Embora tenha feito sozinho clássicos sensacionais como “Metamorfose Ambulante”, a própria “Ouro de Tolo” e a divertida “Mosca na Sopa”, misturando rock e ponto de macumba, Raul pediu mais letras a Paulo. Um dos exemplos de ‘parto’ musical foi “Al Capone”. O cantor pediu uma letra a Paulo, que veio com uma poesia quilométrica. Num acesso de rara modéstia, como diz Nelsinho Motta, o “Mago” admitiu que não sabia fazer letra e os dois, juntos, começaram a traçar a ideia do que seria a canção. E saiu… Ê Al Capone! Vê se te emenda! Já sabem do teu furo, nêgo, no Imposto de Renda… ê Al Capone! Vê se te orienta! Assim dessa maneira, nêgo, Chicago não aguenta…

O disco, gravado em 1973 nos estúdios da Philips no Rio de Janeiro, contou com produção musical e direção artística do próprio Raul Seixas e de Marco Mazzola. Em menos de meia hora e dez músicas, além de uma vinheta, “Good Rockin’ Tonight”, uma aberturinha com a voz do baiano aos nove anos de idade, Krig-ha, Bandolo! traz pelo menos cinco grandes clássicos do cantor e a veia irônica e afiada que marcaria toda a sua carreira até sua morte prematura, aos 44 anos, em 1989.

Querem um exemplo? Aí está a letra completa de “Rockixe”, outro mix de rock com ritmos nordestinos, bem brasileiros.

Vê se me entende, olha o meu sapato novo
Minha calça colorida, o meu novo way of life
Eu tô tão lindo, porém bem mais perigoso
Aprendi a ficar quieto e começar tudo de novo

O que eu quero, eu vou conseguir
O que eu quero, eu vou conseguir
Pois quando eu quero todos querem
Quando eu quero todo mundo pede mais
E pede bis

Eu tinha medo do seu medo
do que eu faço
Medo de cair no laço
que você preparou
Eu tinha medo de ter que dormir mais cedo
numa cama que eu não gosto só porque você mandou…

Você é forte mais eu sou muito mais lindo
O meu cinto cintilante, a minha bota, o meu boné
Não tenho pressa, tenho muita paciência
Na esquina da falência
que eu te pego pelo pé

Olha o meu charme, minha túnica, meu terno
Eu sou o anjo do inferno que chegou pra lhe buscar
Eu vim de longe, vim d´uma metamorfose
Numa nuvem de poeira que pintou pra lhe pegar

Você é forte, faz o que deseja e quer
Mas se assusta com o que eu faço, isso eu já posso ver
E foi com isso justamente que eu vi
Maravilhoso, eu aprendi que eu sou mais forte que você

O que eu quero, eu vou conseguir
O que eu quero, eu vou conseguir
Pois quando eu quero todos querem
Quando eu quero todo mundo pede mais
E pede bis, e pede mais…

Entre os músicos de estúdio, estão Paulo César Barros (baixo/Renato e seus Blue Caps); Ivan “Mamão” Conti (bateria/Azymuth); Jay Vaquer (guitarra); Miguel Cidras (piano e teclados); o lendário Zé Menezes (banjo) e Paulinho Batera (berimbau). Um disco histórico, que a revista Rolling Stone, em sua edição brasileira, colocou como o 12º mais importante da história da música nacional.

Ficha técnica de Krig-Ha, Bandolo!

Gravadora: Philips (hoje Universal Music)
Gravado em 1973, no Rio de Janeiro
Produção de Marco Mazzola e Raul Seixas
Duração: 28’56”

Músicas:

1. “Good rockin’ tonight” (introdução) [Roy Brown]
2. “Mosca na Sopa” (Raul Seixas)
3. “Metamorfose Ambulante” (Raul Seixas)
4. “Dentadura Postiça” (Raul Seixas)
5. “As Minas do Rei Salomão” (Raul Seixas/Paulo Coelho)
6. “A Hora do Trem Passar” (Raul Seixas/Paulo Coelho)
7. “Al Capone” (Raul Seixas/Paulo Coelho)
8. “How Could I Know” (Raul Seixas)
9. “Rockixe” (Raul Seixas/Paulo Coelho)
10. “Cachorro Urubu” (Raul Seixas/Paulo Coelho)
11. “Ouro de Tolo” (Raul Seixas)

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