Discos eternos – Phono 73, o canto de um povo (1973)

Phono73

RIO DE JANEIRO – Até 1972, os Festivais de Música promovidos pelas emissoras brasileiras de televisão, com poucas exceções, foram um grande esteio de canções, compositores e intérpretes para este país. Devemos a este tipo de evento o surgimento de gente como Chico Buarque de Hollanda, Edu Lobo, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Os Mutantes e muitos outros.

Como o radicalismo e a intolerância estavam muito em voga até nos festivais competitivos, em tempos de ditadura, o interesse se esvaiu e quem pegou o mote no ar foi André Midani, o dinâmico presidente da Philips no Brasil. Com a ajuda de um “grupo de trabalho” encabeçado por Nelson Motta, Armando Pittigliani, Roberto Menescal e Artur da Távola, estabeleceu conceitos entre os artistas e a gravadora soube dividir muito bem o seu cast com artistas de prestígío e outros mais populares. Dentro dessa receita de sucesso, Midani incentivou a realização de um festival não-competitivo só com artistas da própria Philips: nasceu o Phono 73.

De 11 a 13 de maio daquele ano, os principais artistas da companhia estiveram presentes no Palácio das Convenções do Anhembi, escolhido não por acaso. As instalações estavam sendo inauguradas e o auditório com 3,5 mil lugares disponíveis lotou em todas as noites de shows.

A Philips enfrentou uma série de dificuldades com a logística e com otras cositas más. Os spots da iluminação, feita por Ziembinski a pedido de André Midani, graças à  experiência do velho Zimba no teatro brasileiro, explodiam a três por dois. Mas a preocupação maior não era com a luz ou a falta dela. E sim com a quantidade de meganhas à paisana que circulavam pelo auditório do Anhembi, certamente escaldados pela presença de artistas que poderiam criar algum tipo de polêmica.

O Phono 73 previa apresentações individuais dos artistas e alguns deles se reuniriam em duplas para tocar uma ou mais músicas. E uma dessas duplas fez muito barulho: Gilberto Gil e Chico Buarque de Hollanda.

Os dois tinham a pretensão de apresentar a inédita – e também censurada “Cálice”, com uma aliteração bem audível para os militares. Era meio que um cale-se para os que detinham o poder no país, sacaram? Para nenhuma surpresa, o som foi cortado direto da mesa a mando dos policiais, o MPB-4 ajudava trocando os microfones de Chico Buarque e um a um eles foram sendo desligados. Até que o compositor e Gil finalmente desistiram de tocar a canção.

“Vamos ao que pode”, resignou-se Chico, sabendo que também teria o som cortado se cantasse coisas como “Ana de Amsterdam”, com a história lésbica entre Ana e Bárbara, a esposa de Calabar – da também proibida peça “Calabar, o elogio da traição”.

Furioso, Buarque cantou “Cotidiano” e o rock “Baioque”, com o auxílio do MPB-4. Revoltado com a interferência da censura, chamou-a de f… da p… ao fim de sua apresentação. Audacioso, não?

A censura, aliás, papava mosca onde menos se esperava dela. O mesmo MPB-4 apresentou “Pesadelo”, da dupla Paulinho Tapajós e Paulo César Pinheiro, que começava assim:

Quando o muro separa uma ponte une
Se a vingança encara o remorso pune
Você vem me agarra, alguém vem me solta
Você vai na marra, ela um dia volta

E se a força é tua ela um dia é nossa
Olha o muro, olha a ponte, olhe o dia de ontem chegando
Que medo você tem de nós, olha aí

Você corta um verso, eu escrevo outro
Você me prende vivo, eu escapo morto

De repente olha eu de novo

Incrível como uma canção destas não foi censurada e pôde ser cantada no Phono 73.

Politizada e passional, a plateia do Anhembi encarou com desdém alguns dos artistas escalados e vaiou vários deles. Sobrou até para Elis Regina que, por ter aceitado cantar na Olimpíada do Exército em 1972, foi ‘enterrada’ por Henfil no Cemitério dos Mortos-Vivos da personagem Cabôco Mamadô, n’O Pasquim. A Pimentinha enfrentou os apupos com altivez antes de cantar “Cabaré”, da dupla revelação daqueles anos formada por João Bosco e Aldir Blanc, sendo defendida veementemente por Caetano Veloso. “Respeitem a maior cantora do Brasil. Respeitem Elis Regina. Respeitem a música popular brasileira.”

Gal, Nara, Melodia, Caetano, Bethania e... Odair Jose

Registre-se também que o baiano provocou uma boa dose de polêmica no Phono 73. Além de criticar a plateia, dizendo que ‘não existia nada mais Z do que um público classe A’, chamando o evento por tabela de Caphono 73, Caetano fez o dueto mais provocativo e surreal de todo o evento, com Odair José, o “Terror das Empregadas”, que mesmo sendo um artista da corrente brega, taxada de alienada pela turma mais radical de esquerda, sofria censura em decorrência das temáticas polêmicas de algumas de suas músicas, principalmente “Pare de tomar a pílula”.

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Os dois se encontraram num sítio do interior de São Paulo, por iniciativa de Caetano, que queria se apresentar ao lado de Odair e provocar polêmica, atingindo seu intento, pois “Eu vou tirar você desse lugar”, canção apresentada pelos dois, foi vaiadíssima. Odair não se vexou. Mesmo ‘proibido’ e já que o parceiro de palco, revoltado com as vaias, caiu fora de cena, cantou “Pare de tomar a pílula”. Mais vaias.

O Phono 73 teve coisas interessantes, como Maria Bethânia e Gal Costa dividindo microfones numa emocionada interpretação de “Oração a mãe menininha”, de Caymmi, que acabou com as duas se beijando na boca; Toquinho e Vinícius desfilando grandes composições feito “Regra três”, “Samba de Orly” e “Meu pai Oxalá”; Ronnie Von com “Vai depressa”; o emergente talento de Raul Seixas na anárquica apresentação de “Loteria de Babilônia”, Jorge Benjor (ainda Jorge Ben) eletrificando e suingando sua “Mas que nada”, integrando-a com “É de manhã”, de Caetano Veloso, e até mesmo Wilson Simonal, que já estava em processo de fritura no meio artístico, cantando o “Hino ao Senhor”, composição de Tony Osanah, antigo integrante dos Beat Boys.

Interessante notar que, na capa do álbum triplo originalmente lançado, depois convertido para dois CDs (que ganharam um inédito registro em DVD graças a um material que nunca tinha sido editado e que pertence ao acervo de Guga de Oliveira, irmão de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho), constava na arte as imagens de Hermeto Paschoal, Luiz Melodia, do grupo nordestino Quinteto Violado, Os Mutantes e Rita Lee, que ficaram de fora do disco. Os motivos que levaram estes últimos a não figurar com suas faixas são óbvios: ainda em 73, Os Mutantes foram dispensados da gravadora. E Rita Lee, que tocou em dueto com Lúcia Turnbull formando as chamadas Cilibrinas do Éden, fez uma apresentação que beirou o melancólico. Nada aos pés do que ela faria como a rainha do rock brasileiro.

Ficha técnica de Phono 73, o canto de um povo
Selo: Philips/Mercury/Universal Music
Produção de Nelson Motta, Roberto Menescal e Armando Pittigliani
Gravado ao vivo de 11 a 13 de maio de 1973 no Palácio das Convenções do Anhembi, em São Paulo

Músicas:

Disco #1

1. Regra três (Vinícius de Moraes) [Toquinho e Vinícius]
2. Samba de Orly (Chico Buarque de Hollanda) [Toquinho e Vinícius]
3. Orgulho de um sambista (Gilson de Souza) [Jair Rodrigues]
4. Sou da madrugada (Gilson de Souza/Wando) [Jair Rodrigues]
5. Hino ao Senhor (Tony Osanah) [Wilson Simonal]
6. Rock da barata (Jorge Mautner) [Jorge Mautner]
7. Tudo se transformou (Paulinho da Viola) [Caetano Veloso]
8. Eu vou tirar você desse lugar (Odair José) [Caetano Veloso e Odair José]
9. Vai depressa (Willy Verdaguer) [Ronnie Von]
10. Loteria de Babilônia (Raul Seixas/Paulo Coelho) [Raul Seixas]
11. Me acende com teu fogo (Erasmo Carlos/Roberto Carlos) [Erasmo Carlos]
12. Medley – Sentado à beira do caminho (Erasmo Carlos/Roberto Carlos)/Foi assim (Renato Corrêa/Ronaldo Corrêa)/Festa de arromba (Erasmo Carlos/Roberto Carlos) [Wanderléa e Erasmo Carlos]
13. É com esse que eu vou (Pedro Caetano) [Elis Regina]
14. Ladeira da preguiça (Gilberto Gil) [Elis Regina e Gilberto Gil]
15. Filhos de Gandhi (Gilberto Gil) [Gilberto Gil]
16. Medley – Mas que nada (Jorge Benjor)/É de manhã (Caetano Veloso) [Jorge Benjor]

Disco #2

1. Zumbi (Jorge Benjor) [Jorge Benjor]
2. Não tem perdão (Ivan Lins/Ronaldo Monteiro de Souza) [Ivan Lins e MPB-4]
3. Pesadelo (Maurício Tapajós/Paulo César Pinheiro) [MPB-4]
4. A alegria continua (Noca da Portela/Mauro Duarte) [MPB-4]
5. Baioque (Chico Buarque de Hollanda) [Chico Buarque]
6. Manera, fru-fru, manera (Raimundo Fagner) [Fagner]
7. Jazz potatoes (Jorge Benjor) [Jorge Benjor e Gilberto Gil]
8. Diz que eu fui por aí (Zé Keti) [Nara Leão]
9. Quinze anos (Naire/Paulinho Tapajós) [Nara Leão]
10. Movimento dos barcos (Jards Macalé/Capinam) [Jards Macalé]
11. Trem das onze (Adoniran Barbosa) [Gal Costa]
12. Sebastiana (Rosil Cavalcanti) [Gal Costa]
13. Oração de Mãe Menininha (Dorival Caymmi) [Gal Costa e Maria Bethânia]
14. Preciso aprender a só ser (Gilberto Gil) [Maria Bethânia]
15. Trampolim (Maria Bethânia/Caetano Veloso) [Maria Bethânia]
16. A volta da Asa Branca (Luiz Gonzaga) [Caetano Veloso]

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