Equipes históricas – Fittipaldi, parte VIII (final)

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Chico Serra: lutando sozinho para manter a Fittipaldi viva na temporada de 1982

RIO DE JANEIRO – Mergulhada na maior crise de sua história, após um campeonato em que passou em branco, a Fittipaldi nadava contra a corrente, pela sobrevivência na Fórmula 1. As dívidas se acumulavam e com a inflação brasileira a níveis galopantes, pouco ou nada restava fazer pela equipe dos irmãos Wilsinho e Emerson Fittipaldi – que ainda lutavam para manter o sonho vivo.

Eles tiveram que abrir mão do acordo com Keke Rosberg, que logo assinou com a Williams para ser o sucessor de ninguém menos que Alan Jones, o campeão mundial de 1980. Há quem diga que o piloto indicado para esta vaga era o francês Jean-Pierre Jarier, que fizera boas corridas com a Osella em 1981. Mas “Jumper” teria lesionado uma costela e, sem estar 100% fisicamente, acabou preterido pelo finlandês.

O jeito para a Fittipaldi foi dar sequência à participação do time no campeonato de 1982 alinhando um único carro: o F8D, herança do projeto de Harvey Postlethwaite, contratado a peso de ouro pela Ferrari, foi remodelado para atender às especificações do regulamento, que previam a volta das minissaias e dos “wing-cars”. Com motor Ford Cosworth DFV V8 e câmbio Hewland, o carro seria equipado com pneus Pirelli. March, Arrows, Osella e Toleman eram as outras clientes do fabricante italiano.

Chico Serra foi mantido a bordo como o único piloto do #20 e na primeira prova da temporada, o GP da África do Sul, marcante pela greve dos pilotos que se rebelaram contra a adoção da Superlicença, obra de Jean-Marie Balestre, o piloto brasileiro conseguiu a 25ª colocação no grid. Com problemas terríveis de vibração em seu carro, Chico terminou em 17º lugar, cinco voltas atrás do vencedor Alain Prost.

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Nos treinos que antecederam o GP do Brasil, Chico andou com o F8D só com os patrocínios da Caloi e da Brasilinvest; os demais apoiadores foram fechados na véspera da corrida

A Fittipaldi foi para a prova de abertura com o carro todo branco. Mas para o GP do Brasil, novidades: Emerson garantira um desafogo nas combalidas finanças do time com um pool de empresas brasileiras. Entravam em cena além da Caloi, que já patrocinava os carros da equipe desde o fim de 1981, a Brasilinvest, a Petrobras, o Sal Cisne, a Carplan Leasing e os Óleos Maria, graças a um velho amigo de Emerson, o ex-piloto Lian Abreu Duarte.

O F8D de Chico Serra apareceu em Jacarepaguá pintado de azul, vermelho e branco e o piloto, com muito esforço, conquistou a 25ª e penúltima posição do grid, à frente do Talbot-Matra do estadunidense Eddie Cheever, que não se adaptava ao forte calor carioca. Com os abandonos de diversos adversários, Serra fez uma corrida honesta e antes da metade da disputa já estava entre os 12 primeiros. Estava prestes a superar o chileno Eliseo Salazar, da ATS, quando a suspensão do carro quebrou sem aviso prévio na curva Sul. Fim de corrida para a Fittipaldi e Chico Serra.

Em Long Beach, Chico ficou a 5″180 do tempo da pole position, cravada por Andrea de Cesaris com sua Alfa Romeo. Com o 29º tempo, ele ficou de fora do GP dos EUA-Oeste. Ausente no GP de San Marino com o boicote da FOCA à corrida realizada em Imola por conta das declassificações sofridas em Jacarepaguá por Nelson Piquet e Keke Rosberg, a Fittipaldi e Chico foram para Zolder disputar o GP da Bélgica.

E foi aquela tristeza: Gilles Villeneuve sofreu um acidente grave durante os treinos, do qual não escaparia. O treino foi interrompido e Emerson tomou o máximo de cuidado para não prejudicar o seu piloto, dando a recomendação a Wilsinho. “Não fala nada pro Chico”.

A pista foi reaberta e incrivelmente o brasileiro virou um tempo melhor após o acidente. Serra ficou com a 25ª posição e largou duas posições à frente com a morte de Villeneuve e o forfait de Didier Pironi. No ano anterior, a melhor atuação de Chico fora justamente em Zolder e ele fez uma corrida muito boa com o F8D. Passou em 18º na primeira volta e na 53ª passagem, alcançou as dez primeiras posições.

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Mesmo com enormes dificuldades, Chico Serra conseguiu um pontinho no traumático GP da Bélgica, em Zolder

Aliás, Serra, mesmo com o spoiler dianteiro visivelmente danificado, chegou a andar várias voltas à frente de Nelson Piquet, que fazia uma corrida repleta de dificuldades com o Brabham BT50 BMW Turbo. A resistência ao compatriota durou até a volta 61, quando Chico já estava em sexto. Na quadriculada, Piquet cruzou em 6º, marcando o primeiro ponto do ano e Serra em sétimo. Mas aí veio a boa notícia: a vistoria excluiu a McLaren de Niki Lauda do resultado final. O carro do austríaco estava abaixo do peso mínimo de 580 kg e tanto Piquet quanto Serra ganharam posições. Foi o primeiro ponto de Chico na Fórmula 1.

A volta à dura realidade após o ponto comemorado em Zolder veio no GP de Mônaco. Chico teve que encarar a pré-qualificação, porque nos treinos oficiais só poderiam andar 26 carros para 20 vagas e havia 31 inscritos. Desconsiderando o fraquíssimo espanhol Emilio De Villota, que se inscrevera num terceiro March 821, Chico foi o 30º colocado – seu tempo foi mais de oito segundos pior que a pole position de René Arnoux.

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Resultado honesto: 10º em Detroit após largar da última posição, numa pista mais lenta que Mônaco

Nas ruas de Detroit, com três carros a menos que o total normal da temporada, o escândalo foi a não-classificação de Nelson Piquet com o Brabham BMW Turbo. Serra largou em último com o F8D e fez uma corrida honesta, dentro das poucas possibilidades do Fittipaldi. Num circuito tortuoso e extremamente lento – mais lento até que Mônaco – Chico foi o 10º colocado.

Esperançosos, Serra e a equipe foram para Montreal, onde aconteceria mais uma vez o GP do Canadá. A Fórmula 1 conheceu naquele fim de semana a explosiva faceta de Chico Serra, que nos tempos de Fórmula 3 chegara a quebrar vários capacetes, revoltado com adversários. O piloto tentava melhorar o seu tempo de classificação, pois vinha em último. E na tentativa final com pneus novos, Chico foi atrapalhado por Raul Boesel em seu March 821.

O resultado… bem… melhor ver o vídeo abaixo.

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A boa atuação no início do GP da Holanda, em Zandvoort, acabou com uma falha na bomba de combustível; foi a 100ª corrida da Fittipaldi na Fórmula 1

Vida que segue e após o complicado GP do Canadá, marcado pela morte do novato italiano Riccardo Paletti, veio o GP da Holanda em Zandvoort. Seria, aliás, a 100ª corrida da história da Fittipaldi. Chico foi bem nos treinos oficiais e conseguiu o 19º lugar do grid. O brasileiro andou muito bem e chegou a ocupar a 15ª colocação, mas a bomba de combustível o deixou na mão após 18 voltas completadas.

A Fittipaldi lutava com todas as forças que lhe restavam e um novo projeto estava a caminho, para estrear na segunda metade da temporada. Nessa época, quem bateu à porta do time em Slough pedindo emprego foi um jovem estagiário de engenharia. Seu nome: Adrian Newey.

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Quando tentava subir para 12º no início do GP da Inglaterra, Chico Serra sofreu uma capotagem na estreia do F9

E no GP da Inglaterra, em Brands Hatch, a equipe vislumbrou uma ótima chance de tirar o pé da lama. Afinal, era a estreia do novo F9, projeto de Tim Wright e Ricardo Divila, com consultoria de David Baldwin. Mesmo sem dinheiro e sem chances de testar o novo chassi, a equipe foi à luta. Numa pista que conhecia bem, Chico teve desempenho razoável na qualificação e alcançou a 21ª colocação. Com o caos da largada, passou em décimo-quarto na primeira volta e ganhou uma posição na seguinte. Quando tentou ultrapassar Jean-Pierre Jarier, da Osella, os dois se tocaram e Chico sofreu um dos acidentes mais graves de sua carreira, capotando e demolindo o Fittipaldi F9.

Para nenhuma surpresa, Chico não competiu no GP da França. Em Hockenheim,  reconstruído, o F9 fez sua segunda aparição na temporada: Serra fez o 26º tempo nos treinos, mas com o acidente gravíssimo do pole position Didier Pironi e a ausência de Niki Lauda, com fratura num pulso, partiu da vigésima-quarta posição para terminar em décimo-primeiro.

Na Áustria, Chico Serra e o F9 foram bem: 20º colocado no treino, o brasileiro chegou ao fim da corrida e quase conquistou mais um pontinho que seria salvador: terminou em sétimo. Nessa altura do campeonato, a Fittipaldi Automotive não tinha mais nenhuma perspectiva quanto a uma participação no Mundial de 1983. Sem acordo para conseguir um motor decente – de preferência turbo, para evitar o uso do defasado Ford Cosworth DFV e principalmente pagar as astronômicas dívidas, que já ultrapassavam US$ 5 milhões, a equipe dava seus últimos suspiros na Fórmula 1.

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Fora do GP da Suíça: Chico não se classificou por um décimo de segundo

Por 0″128, Serra ficou de fora da disputa do GP da Suíça, em Dijon-Prénois. E de acordo com os compêndios, a última corrida da história do time foi o GP da Itália, em 12 de setembro de 1982, no mítico circuito de Monza. Último colocado no grid, Chico terminou aquela corrida em 11º lugar. A equipe ainda foi a Las Vegas para a disputa da decisão do campeonato – que seria, aliás, ganho por Keke Rosberg. Chico Serra foi o 30º e último nos treinos oficiais e assistiu a corrida pela televisão.

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A última corrida: em 12 de setembro de 1982, o Fittipaldi F9 de Chico Serra largou em 26º e último, terminando em 11º

O piloto ficou em 26º e último lugar no Mundial de Pilotos e a Fittipaldi obteve a 14ª posição no Mundial de Construtores. Mas nada mais podia ser feito para salvar a equipe, que sem patrocínio, sem apoio de um fornecedor de motor para 1983 e uma dívida estimada em US$ 7,2 milhões, acabou fechando a fábrica em Slough e encerrando sua trajetória na Fórmula 1.

Emerson e Wilsinho, além de humilhados, endividados e quebrados, tiveram que se desfazer de vários bens para zerar as monstruosas dívidas. Começaram do zero e o resto é história. O Rato venceu duas vezes as 500 Milhas de Indianápolis e foi campeão da Fórmula Indy em 1989. Há alguns anos, eles voltaram inclusive a correr juntos no extinto Brasileiro de Grã-Turismo e foi aquela choradeira quando anunciaram a parceria. O Tigrão, com 70 anos, hoje acompanha com orgulho inconfundível o sucesso do filho Christian, recém-consagrado campeão do Tudor United SportsCar Championship.

O retrospecto da Fittipaldi na Fórmula 1, incluindo as provas disputadas como Copersucar, engloba um total de 103 GPs disputados – mais do que muitas escuderias que tiveram aporte financeiro bem mais generoso que o projeto brasileiro. De 1975 a 1982, foram somados 44 pontos, com três pódios (um segundo e dois terceiros lugares), cinco quartos lugares, quatro quintos e sete sextos. Até hoje, nenhuma equipe da América do Sul ousou ir tão longe quanto a ideia de Wilsinho, costurada no fim de 1973. E duvido que alguém consiga, neste continente, fazer algo parecido com o pioneirismo dos irmãos Fittipaldi, massacrados e incompreendidos pela opinião pública e por uma imprensa que sempre desconheceu as dificuldades de fazer – e manter – um F-1 competitivo.

Comentários

  • Parabéns por esta aula de historia do automobilismo que tivemos. Foram brasileiros ousados e pagaram o preço por isso.
    E mando a Rede Globo para a PQP. Estragam qualquer iniciativa que vai chamar mais atenção que eles próprios. Foi uma conspiração, não televisionando as provas.

  • Triste fim para aventura brasileira na F1, e para Emerson que perdeu um pouco do prestígio que tinha, só vindo a recuperá-lo depois de sua aventura nos EUA pela F-Indy.

  • Belíssimo relato da ousadia dos irmãos Fittipaldi. Emerson poderia ter ganho mais um título, guiando pela McLaren, Ferrari ou pela Williams. Mas preferiu seguir um sonho, muito corajoso! Obrigado Rodrigo! Aguardando o livro sobre a escuderia. ABRAÇO

  • Maravilhoso!!! fiquei emocionado nas ultimas frases, ninguém aqui no brasil entendeu a equipe, uma pena, podia ser a Zakspeed a próxima da série , fica a dica

  • Rodrigo,
    Meus parabéns pelo artigo sobre a história da equipe Fittipalidi na Fórmula 1.
    Quero também transmitir meus parabéns aos irmãos Fittipalidi pela coragem de realizar um sonho da equipe própria na F1.
    Por coincidência ou não, seguem duas curiosidades:
    1) Emerson começou a brilhar na Formula Indy com o mesmo número 20 que Fittipaldi de 1980 a 1982 e Patrick Racing (de 1986 a 1989) usavam na época em que ele correu;
    2) A equipe Fittipaldi correu pela última vez em Monza (GP Itália 1982), na mesma pista onde próprio Emerson se sagrou campeão mundial da F1 em 1972.
    Abraços.
    Cláudio

  • E onde estão os chassis não restaurados dos carros da Fittipaldi? Viraram sucata, ou estão funcionais em categorias de nostalgia? Parabéns pelos brilhantes textos!

    • Wallace, pelo menos alguns dos F8 ainda estavam por aí e um deles fez uma prova de carros clássicos em Baku. Recentemente, numa preliminar de Históricos em Cingapura, Ollie Hancock ganhou com o Copersucar F5A.

  • Rodrigo, meus parabéns por esta brilhante matéria relatada em 8 episódios sobre a equipe Fittipaldi, por uma grata coincidência estava presente quando dos primeiros teste do F6 na arquibancada do antigo e saudoso traçado de Interlagos e agora com esta matéria foi voltar no tempo,

  • Sugestões para as próximas, que eu acho que se encaixam na proposta: Alfa Romeo, Ligier, BRM, Tyrrell, Arrows (talvez) e Renault (até 1985).
    Parabéns pelo trabalho, muito bacana.

    • Acho que ele vai criar outra categoria, porque ele disse que a Ligier encerra esta série.

      A Arrows está nas “Saudosas Pequenas”.

  • Rodrigo existe algum bom documentário sobre esse história dos Fittipaldi na F1 com sua equipe?

    Acompanhei toda as matérias foram sensacionais, num momento de crise no Brasil, que nem foi citado a inflação arrebentando o valor no nosso dinheiro, essa familia fez um bem para o país, infelizmente quem deveria apoiar como mídia não o fez como imaginado, digo a Rede PlinPlin(depois da onde UFC se preparem virá a onde Medina do surf)

    Parabens Rodrigo

  • Que história bacana! Talvez um dia possamos ter novamente um Fórmula Um brasileiro no campeonato.
    O problema é que quando iriam decolar nossas empresas não acreditaram.
    Aguardando novas histórias.

  • Esperei até o último “episódio” desse pedaço da série para dizer que foi talvez uma das melhores coisas que li em muito tempo, não só sobre automobilismo. Textos longos, detalhados, pesquisados – o tipo de escrita que anda desaparecendo nesses tempos de matérias de copy&paste e apuração apressada.

    Foi um verdadeiro colírio para os olhos. Parabéns, Rodrigo – e sigo na espera dos próximos textos. :)

  • Compartilho da opinião de muitos quanto ao relato histórico, primoroso! Nunca havia lido nada a respeito tão bem escrito. Show de bola!