Discos eternos – Legião Urbana (1985)

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RIO DE JANEIRO – O primeiro disco da Legião Urbana é um dos marcos do rock brasileiro em qualquer tempo. Das bandas da chamada “turma” de Brasília, foi a primeira a ter um trabalho gravado por uma das grandes do mercado fonográfico – ok… os Paralamas do Sucesso gravaram primeiro, mas nem Herbert Vianna e muito menos Bi Ribeiro podem ser considerados integrantes da turma que tinha, entre outros, Renato Russo, Dado Villa-Lobos, Fê e Flávio Lemos, Dinho, Loro Jones, Gutje, Ameba, André X, Philippe Seabra e por aí afora.

Entretanto, lançado logo no segundo dia de janeiro de 1985, não foi um disco capaz de convencer ninguém da Artplan, organizadora do primeiro Rock In Rio, que valeria a pena incluir o grupo no lineup de um grande festival – que deu espaço a grupos consideravelmente novos, feito o próprio Paralamas, o Barão Vermelho, Kid Abelha e et cetera.

Por isso, o lançamento do primeiro disco de uma das mais importantes bandas do Brasil nos últimos 30 anos passou um tanto quanto despercebido. Na verdade, foram vendidas apenas 1,2 mil cópias nos primeiros três meses daquele ano de 1985, que marcava também a despedida da ditadura militar.

Mas a energia, a atitude e a estética de um movimento que transformou a música no mundo inteiro estavam ali – e não passaram despercebidas. A fúria do punk rock foi a mola-mestra de um trabalho que o tempo se encarregou de colocar no patamar das melhores estreias de grupos brasileiros na história da música em português.

A Legião nasceu com o fim do Aborto Elétrico, decretado quando Fê Lemos, revoltado porque Renato Russo errara a letra de “Veraneio Vascaína” numa das apresentações do grupo, jogou uma baqueta no vocalista, que abandonou o palco e a banda.

Renato virou o Trovador Solitário, mas o desejo de ter um grupo era mais forte e com Marcelo Bonfá, que era d’Os Metralhas, formou a Legião Urbana em 1982. A banda tinha um baixista e um baterista. E nada mais. Isso não foi empecilho para que Renato rascunhasse as primeiras composições do repertório do primeiro disco.

Antes de Dado Villa-Lobos chegar finalmente à guitarra, Ico Ouro-Preto, irmão mais velho de Dinho, foi quem empunhou o instrumento, junto a Eduardo Paraná, hoje conhecido pelo nome artístico de Kadu Lambach. Havia ainda um tecladista, Paulo Paulista.

Com essa formação, a Legião – embora tivesse sido anunciado o Aborto Elétrico – tocou num festival de rock em Patos de Minas. Mas o estilo virtuosístico de Paraná, com longos solos de guitarra, não agradava a Renato.

Os dois entraram em conflito e Paraná tomou outro caminho. Paulista também: voltou a seu estado natal para tocar violão clássico. Ico Ouro-Preto também caiu fora da banda, virou fotógrafo e aí entrou Dado Villa-Lobos, que também tinha um grupo: Dado e o Reino Animal.

A Legião seguiu como trio em 1983 e foi assim que fez os primeiros shows no eixo Rio-SP, no lendário Napalm. Mas Renato, que enfrentava seguidas crises depressivas e a rejeição de muitos da turma de Brasília por ser homossexual, tentou o suicídio cortando os pulsos.

Os cortes profundos afetaram os nervos e Renato não pôde mais tocar baixo. Aí entrou Renato Rocha, compondo assim a histórica formação legionária, com baixo, bateria, guitarra e Renato Russo nos vocais.

Antes de gravar o primeiro álbum do grupo, aliás, Renato trabalhava numa rádio e tinha um programa de Beatles em Brasília. Pelos corredores, alardeava que não era punk, embora na emissora todos tivessem certeza disso, e dizia a muitos que um dia iria ser famoso e ter uma banda do mainstream.

Nisso, chegou às mãos de gente da EMI-Odeon uma fita cassete com uma gravação de Renato se acompanhando com violões, à la Bob Seger. Jorge Davidson, o diretor artístico da EMI, gostou do que ouviu, especialmente “Química” – já gravada pelo Paralamas do Sucesso e “Geração Coca-Cola”. E rapidamente contratou os garotos, antes que alguém chegasse primeiro.

A gestação do primeiro disco da Legião não foi das mais fáceis. A primeira proposta era, de fato, colocar os violões em destaque, meio que emulando o Trovador Solitário dos tempos pós-Aborto. Mas Renato, Dado e Bonfá mostraram personalidade.

Exigiram mudanças e conseguiram. Bateram de frente com Rick Ferreira, lendário guitarrista de estúdio que acompanhou várias sessões com Raul Seixas, logo quando gravaram a primeira demo. Lutaram pelos melhores timbres com o técnico de som Amaro Moço.

E só se entenderam com José Emílio Rondeau, crítico musical travestido de produtor que foi chamado às pressas para salvar um trabalho que se avizinhava perdido pela própria gravadora e também pelos rapazes da Legião.

Mas as músicas, de letras fortes, contundentes e pegada mais internacional que brasileira, entusiasmavam Rondeau e Davidson à medida que eram gravadas. Gonzaguinha, o recordista de músicas censuradas na época da ditadura e um dos principais artistas da EMI-Odeon, quis dar uma olhada nas letras e se impressionou particularmente com “Geração Coca-Cola”.

“Isso é forte, hein? Não tem mensagens cifradas.”

De fato, a canção era uma crítica aberta aos que tinham crescido sob a sombra dos anos de chumbo. Foi a chamada “Geração Coca-Cola”. ‘Somos os filhos da revolução… somos foguetes sem religião… somos o futuro da nação… geração Coca-Cola’, bradava Renato, conclamando a moçada a se redimir após o jugo dos milicos em cima de toda uma juventude oprimida, sem voz e personalidade.

O disco abre com a sensacional “Será”, cujos primeiros versos diziam ao que a Legião e especialmente Renato vinham. Suas letras, personalíssimas, foram muito elogiadas quando o disco foi lançado e o cantor, pelo timbre vocal, foi logo comparado a Jerry Adriani. Nos palcos, ele se transformava num Morrissey tupiniquim, dançando como se não houvesse amanhã.

Por falar em dançar, “A dança” era alusiva ao famoso episódio da Rockonha dos anos 80, ocorrido num sítio em Taguatinga, cidade do Plano Piloto do Distrito Federal, em que todos – todos mesmo – que foram convidados ao evento acabaram em cana. Foram 300 ao todo. Por sorte, os filhos de políticos, diplomatas e militares – ampla maioria – tinham benesses e foram logo liberados. O pai de Renato era um alto funcionário do Banco do Brasil.

“Petróleo do Futuro”, a terceira faixa, também pegava na veia. ‘Sou brasileiro errado… vivendo em separado… contando os vencidos… de todos os lados’. E aí entra em cena aquela que é minha música predileta da Legião, a espetacular “Ainda é Cedo”, que se tornou o símbolo de um disco histórico.

Em “Baader-Meinhof Blues”, Renato Russo trabalha com os contrastes. ‘Já estou cheio… de me sentir vazio… meu corpo é quente… estou sentindo frio’ – e faz uma alusão no título da canção à Fração do Exército Vermelho (RAF), a organização alemã guerrilheira de extrema-esquerda que existiu entre 1970 e 1998.

Mexer nas feridas era o forte do cantor e principal letrista da Legião.

E expor fraquezas também: no meu modo de entender a letra, “Soldados” é a primeira canção com temática homossexual da história do grupo.

Nossas meninas estão longe daqui
E de repente eu vi você cair
Não sei armar o que eu senti
Não sei dizer que vi você ali
Quem vai saber o que você sentiu?
Quem vai saber o que você pensou?
Quem vai dizer agora o que eu não fiz?
Como explicar pra você o que eu quis

O disco ainda tem a vibrante “Teorema” e encerra com chave de ouro, na melancólica linha de sintetizadores e teclados composta por Renato para “Por Enquanto”, música que anos mais tarde Cássia Eller gravaria lindamente.

A Legião ainda faria história no rock brasileiro por muito tempo e não tenham dúvida: os outros discos até os anos 90 serão aqui resenhados.

Ficha Técnica de Legião Urbana
Selo: EMI-Odeon/Universal Music
Gravado de outubro a dezembro de 1984
Produzido por José Emílio Rondeau
Tempo: 37’09”

Músicas:

1. Será (Dado Vila-Lobos/Marcelo Bonfá/Renato Russo)
2. A Dança (Legião Urbana)
3. Petróleo do Futuro (Dado Villa-Lobos/Renato Russo)
4. Ainda é Cedo (Dado Villa-Lobos/Ico Ouro-Preto/Marcelo Bonfá/Renato Russo)
5. Perdidos no Espaço (Dado Villa-Lobos/Marcelo Bonfá/Renato Russo)
6. Geração Coca-Cola (Renato Russo)
7. O Reggae (Marcelo Bonfá/Renato Russo)
8. Baader-Meinhof Blues (Dado Villa-Lobos/Marcelo Bonfá/Renato Russo)
9. Soldados (Marcelo Bonfá/Renato Russo)
10. Teorema (Dado Villa-Lobos/Marcelo Bonfá/Renato Russo)
11. Por Enquanto (Renato Russo)

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