Equipes históricas – Ligier, parte I

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O empreendedor Guy Ligier tornou-se o mais bem-sucedido dono de equipe independente da história do automobilismo francês

RIO DE JANEIRO – Muitos leitores do blog podem achar que a morte recente de Guy Ligier (1930-2015) foi um pretexto para que eu escolhesse a equipe de “Oncle Guy” para dar sequência à série de equipes históricas após a narrativa da trajetória da Tyrrell. Mas a decisão já estava tomada antes e foi consolidada. Agora é a hora do A Mil Por Hora contar como a Ligier se tornou a principal equipe independente da França na Fórmula 1.

Antes de ser piloto de corridas, Guy Camille Ligier começou nos esportes como jogador de rugby, um esporte bastante popular em seu país. Na sua Vichy, onde nasceu em 12 de julho de 1930, exerceu também o ofício de açougueiro. Ao ficar órfão de pai e mãe, Guy foi à luta. Comprou um trator, trabalhou no ramo da construção e deu sequência à sua carreira no rugby, chegando a integrar até a seleção francesa da modalidade. Mas uma hora ele tinha que parar com a bola oval e mudou-se para os esportes motorizados. Começou nas motocicletas e logo foi para os monopostos da Fórmula Júnior.

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Com um Cooper Maserati no GP da França de 1966, em Reims: como piloto, Guy nunca foi grande coisa

Na década de 60, enveredou pelos carros esporte com modelos Porsche e já aos 36 anos, em 1966, estreou na Fórmula 1 como piloto independente. Disputou 12 GPs, primeiro com o modelo Cooper T81 com motor Maserati V12 e depois com um Brabham BT20 de motor Repco V8. De fato, Guy nunca foi dos mais brilhantes ao volante. Pelo menos terminou seis provas – 50% de aproveitamento – conquistando como melhor resultado um 8º lugar no GP da Alemanha de 1967. Mas como o grid daquela prova contava com vários Fórmula 2 para enxertar o baixo número de carros da categoria máxima, Ligier acabou com o ponto do sexto lugar – o único que conquistou na categoria.

Em 1968, ausente das pistas, Guy montou uma sociedade com o amigo Jo Schlesser. Os dois montariam uma equipe de Fórmula 2 com carros McLaren, mas antes que os sonhos se concretizassem, Jo sofreu um acidente brutal e fatal no GP da França disputado no circuito de Rouen Les Essarts, quando seu Honda RA302 com motor refrigerado a ar e chassi de titânio e magnésio explodiu em chamas após bater num barranco, com o carro ainda lotado de combustível. A perda foi o bastante para Ligier cogitar se aposentar de vez dos cockpits e enveredar por outro caminho: a construção de carros de corrida.

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O primeiro Ligier nas 24h de Le Mans de 1970: projeto de Michel Tétu, o JS1 tinha essa sigla em homenagem ao amigo de Guy, Jo Schlesser, morto em 1968

Com projeto de Michel Tétu, veio à luz o primeiro carro esporte da então denominada Automobiles Ligier. Com a sigla JS em homenagem a memória de Jo Schlesser, o JS1 estreou em 22 de março de 1970 com o próprio Guy ao volante. E logo na estreia, vitória no circuito de Albi, com o piloto-construtor repetindo a dose na Coupe des Vitesse. Em 1971, veio o modelo JS3, com motor Ford Cosworth V8. Com ele, Ligier e Patrick Depailler disputaram as 24h de Le Mans daquele ano, sem no entanto conseguir classificação ao fim da disputa.

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O JS3 foi um modelo protótipo que disputou, sem sucesso algum, as provas de Endurance em 1971

Mas o principal modelo da Ligier como construtora de carros-esporte foi o JS2, que foi concebido para receber um motor Maserati. Três deles disputaram as 24h de Le Mans em 1972 e em 1973. Nessa época, quem começava sua ligação quase umbilical com a equipe foi um certo Jacques Laffite, então um desconhecido em busca de um lugar ao sol no automobilismo. Ele e Guy disputaram – sem sucesso – as 24h de Le Mans, juntos, em 1973, abandonando a corrida.

A parceria de Jean-Louis Lafosse e Guy Chasseuil quase rendeu à Ligier uma vitória histórica nas 24h de Le Mans de 1975: a dupla do carro #5 chegou em segundo

No ano de 1974, Laffite e Alain Serpaggi terminaram a corrida de Sarthe na 8ª posição. Naquela mesma temporada, a Ligier competiu no Campeonato Mundial de Resistência (WSC) e em várias outras provas, ganhando as 4h de Le Mans no circuito Bugatti com Guy Chasseuil e o Tour de France com Gérard Larrousse/Jean-Pierre Nicolas/Johnny Rives. E em 1975, com o JS2 ganhando de novo o motor Ford Cosworth V8, a Ligier quase tornou possível o sonho de um construtor independente francês vencer em Le Mans: Jean-Louis Lafosse e Guy Chasseuil chegaram em 2º lugar, apenas uma volta atrás do Gulf-Mirage da equipe de John Wyer, que ganhou a prova com Jacky Ickx/Derek Bell.

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Em pé ao lado de Gérard Ducarouge, Guy Ligier não esconde o sorriso na apresentação do primeiro F1 com seu nome, em 1975. O carro também seria testado por Jean-Pierre Beltoise

A Ligier já tinha o apoio da SEITA (sigla para Societé d’Explotation Industrielle des Tabaques et Allumettes), dona da marca Gitanes. E como a Fórmula 1 ainda não era tão cara e os motores Matra S73 V12 usados no Mundial de Resistência pela lendária marca francesa ainda eram potentes e confiáveis – além de se enquadrarem perfeitamente no regulamento técnico da categoria, a marca entrou para valer com o objetivo de construir um carro para a disputa do Mundial de 1976. O escolhido para piloto não podia ser outro que não Jacques Laffite, já com 32 anos e que disputara um ano e meio da categoria pela equipe Williams.

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“Corcunda de Notre Dame” e “Bule de Café” foram os apelidos que o insólito Ligier JS 5 Matra ganhou no início de 1976. O carro era um projeto de Gérard Ducarouge e Paul Carillo

O primeiro carro da equipe francesa para a F1 foi um projeto de Gérard Ducarouge e Paul Carillo. O modelo JS5, assim que foi lançado, foi alvo de muitas risadas. Com uma tomada de ar extremamente alta e pronunciada, o carro logo ganhou dois apelidos: “Bule de Café” e “Corcunda de Notre-Dame”. Mesmo com o visual insólito, o JS5 andou bem em Interlagos em sua estreia no GP do Brasil, em Interlagos. Laffite largou em 11º e acabou de fora da disputa após 14 voltas, por quebra de câmbio.

O JS5 e Laffite ficaram pelo caminho no GP da África do Sul por quebra de motor, mas no circuito urbano de Long Beach, palco pela primeira vez do GP dos EUA-Oeste, o time francês marcou seus primeiros pontos com um promissor 4º lugar. Foi a última corrida do JS5 com a enorme tomada de ar, pois na corrida seguinte em Jarama, na Espanha, o carro já apareceu adequado ao regulamento que abolia a partir de 1º de maio daquele ano os chamados Periscópios. Laffite andou entre os seis primeiros no início, mas teve problemas naquela corrida e chegou apenas na 12ª colocação.

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Já com a tomada de ar mais baixa, dentro do novo regulamento, o Ligier JS5 melhorou seu visual a partir do GP da Espanha, em Jarama

Em Zolder, no GP da Bélgica, Jacques largou da terceira fila e fez uma ótima corrida. Acabou em 3º lugar e conquistou o primeiro pódio do time em sua quinta corrida na Fórmula 1. Eram tempos em que isso era possível… e em Mônaco, partindo de oitavo, Laffite vinha em quinto quando enfrentou um problema com uma das rodas do JS5. O resultado acabou beneficiando Emerson Fittipaldi, que na corrida anterior não se classificara com o Copersucar FD04. Sétimo no grid para o GP da Suécia, em Anderstorp, o francês novamente marcou pontos: foi quarto colocado.

Com 10 pontos somados no Mundial de Construtores, a Ligier ocupava um ótimo 4º lugar, atrás apenas de Ferrari, Tyrrell e McLaren. A equipe chegou a Paul Ricard cheia de otimismo para a disputa do GP da França, na primeira aparição do JS5 Matra diante de uma horda de fanáticos torcedores do carro da casa. O rendimento do carro foi razoável até a 30ª volta: Laffite largou em 13º, estava em sétimo e enfrentou problemas que o fizeram cair várias posições. Recuperou-se, mas já era tarde: foi 13º colocado.

Na Inglaterra, controvérsia: Laffite e a Ligier se envolveram num acidente na primeira largada, que foi anulada. A equipe não podia ter trocado o carro titular pelo reserva, mas mesmo assim o #26 foi visto na relargada. O piloto despencou para 20º na primeira volta e quando já ocupava o oitavo posto, numa recuperação memorável, Jacques recebeu sinalização de bandeira preta, significando desclassificação por troca não autorizada de carro. O francês obedeceu, assim como Clay Regazzoni, da Ferrari. James Hunt, não: o britânico, também envolvido na confusão, venceu a corrida e depois foi excluído do resultado final daquela prova do campeonato.

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Atacando o Karrussell do Nordscheleife, em Nürburgring: Laffite e a equipe fizeram uma belíssima temporada em 1976

Em Nürburgring, onde fora um surpreendente 2º colocado no ano anterior pela Williams, Laffite sequer passou da primeira volta: quebra de câmbio. Na Áustria, numa corrida movimentada e muito disputada, o francês brilhou com o JS5 e igualou o melhor resultado da carreira, conquistando o segundo pódio da Ligier. Em Zandvoort, abandono por queda de pressão de óleo. E em Monza, o ponto alto do campeonato: a conquista da pole position para o Grande Prêmio da Itália. Laffite, porém, permitiu que Jody Scheckter assumisse a liderança no início com sua Tyrrell P34. O francês chegou a baixar para quinto, mas recuperou-se e chegou em 3º – terceiro pódio dele e da equipe em 1976.

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Saldo mais do que positivo na temporada de estreia: a Ligier conquistou uma pole, três pódios e o 5º lugar no Mundial de Construtores em 1976

No Canadá, novo abandono por problemas de pressão de óleo no motor Matra V12 após largar da nona colocação. Em Glen, no GP dos EUA-Leste, o piloto saiu de 12º e bateu. O encerramento do campeonato, no caótico e chuvoso GP do Japão viu Laffite e a Ligier fora dos pontos, com o 7º lugar, na prova em que James Hunt conquistou o título mundial por um mísero ponto de diferença para Niki Lauda. Mas isso se tornou irrelevante: para a Ligier, foi um primeiro ano acima de qualquer expectativa, pois Jacques chegou em 8º lugar no Mundial de Pilotos com 20 pontos e a equipe, empatada com a Penske, ficou em 5º entre os Construtores.

No próximo post, o blog vai falar das temporadas de 1977 e 1978 da equipe francesa.

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