Equipes históricas – Ligier, parte VI

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O bom filho à casa torna: após dois anos na Williams, Jacques Laffite regressou para dividir a Ligier em 1985 com o italiano Andrea De Cesaris

RIO DE JANEIRO – Duas grandes novidades marcaram o início da preparação da Ligier para a temporada 1985 do Mundial de Fórmula 1. A primeira, de ordem técnica: com a saída da Michelin, tradicional fornecedor francês de pneus, o velho Guy Ligier teve que se socorrer de um novo fornecedor e arriscou. Assinou com a Pirelli, que também supriria a Brabham e outros times de menor porte naquele ano. A segunda, era a volta à casa de Vichy do veterano Jacques Laffite, o que sem dúvida representaria um ganho de experiência e velocidade, já que François Hesnault pouco ou nada fez. E de certa forma a permanência de Andrea De Cesaris não deixou de ser uma surpresa.

A trinca de engenheiros formada por Michel Beajuon, Claude Galopin e Henri Durand até que fez um carro bem mais bonito e elegante que o seu antecessor. O novo chassi JS25 foi construído com monocoque em carbono e kevlar, dotado de câmbio Hewland de 5 marchas e do motor Renault Turbo na evolução EF4B. E outra novidade foi a volta ao tradicional azul que marcou a pintura do time no início de sua trajetória na categoria, com os eletrodomésticos Candy ocupando a maior parte do espaço destinado aos patrocinadores. Daquela vez, nada de Loto ou dos cigarros Gitanes.

A temporada começou com o GP do Brasil em Jacarepaguá e Laffite regressou à equipe com um bom 6º lugar após largar em décimo-quinto. De Cesaris bateu e teve uma sequência de três abandonos consecutivos, enquanto Laffite desistiu também em Portugal e no GP de San Marino.

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Aptidão: De Cesaris foi sensacional nas ruas de Mônaco e chegou em 4º lugar

Na pista de Monte-Carlo, no GP de Mônaco, De Cesaris mostrou sua aptidão àquele circuito urbano, com uma corrida excelente, uma das melhores de sua carreira. O italiano conquistou um ótimo 4º lugar após se classificar em oitavo. Laffite abiscoitou mais um pontinho, vindo do meio para o fim do pelotão. E em quatro corridas no início de 1985, a equipe já tinha somado mais pontos do que na temporada anterior.

Em Montreal, Laffite cometeu um erro ao queimar a largada e ser penalizado com acréscimo de um minuto ao tempo total de corrida. Como largou em 19º apenas, não teve chance alguma e terminou em oitavo. De Cesaris também errou no início da disputa: rodou e danificou o carro, caindo para as últimas posições. Após o conserto do carro, voltou para terminar em 14º, três voltas atrasado. Em Detroit, o italiano teve de novo uma corrida ruim e chegou em décimo. Laffite abandonou perto do fim, com problemas na injeção de gasolina.

No seu GP caseiro, em Paul Ricard, a Ligier não se beneficiou tanto quanto a Brabham e Nelson Piquet com o forte calor da corrida francesa, que ajudava no desempenho dos pneus do fabricante italiano. De Cesaris e Laffite largaram em 13º e 15º, respectivamente. E a corrida da dupla acabou com menos de cinco voltas, em decorrência de problemas de transmissão e turbo.

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Em Silverstone, De Cesaris vinha num sólido quarto posto quando a embreagem de seu JS25 quebrou

Porém, na veloz pista de Silverstone, a equipe teve seu melhor fim de semana na F1 desde a temporada de 1982. De Cesaris alinhou de 7º no grid e fez uma corrida monumental, andando entre os quatro primeiros durante todo o tempo que esteve na pista – inclusive ocupando a 3ª posição por quatro voltas. Estava atrás apenas da Lotus de Ayrton Senna e das McLaren de Alain Prost e Niki Lauda, quando sua embreagem quebrou na 42ª volta. Laffite não foi tão espetacular quanto Andrea, mas veio do 16º lugar na largada, dosando o ritmo e beneficiado pela pane seca que afligiu diversos adversários, para chegar em terceiro. Foi o primeiro pódio do francês desde o GP da Áustria em 1982 e o primeiro da equipe desde a corrida de Las Vegas, que encerrara aquele campeonato.

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Voltando ao pódio: Laffite foi 3º colocado em duas corridas consecutivas – Inglaterra e Alemanha

Como efeito da boa performance do time gaulês, a Seita, dona da marca Gitanes, voltou a investir na Ligier. Laffite retribuiu com mais uma ótima atuação a bordo do JS25, terminando de novo no pódio após largar em 13º lugar. De Cesaris ficou de fora na primeira volta. E na corrida seguinte, o italiano entraria para a história daquela temporada.

https://www.youtube.com/watch?v=GsPNpTkdC48

GP da Áustria, circuito de Zeltweg. De Cesaris era o 11º colocado na disputa, exatamente à frente de seu companheiro de equipe, Jacques Laffite. Na altura da décima-quarta volta, o italiano aprontou mais uma das suas na altura da Curva Panorama. E acabou protagonista de um dos acidentes mais espetaculares de toda a sua carreira. O vídeo aqui acima não me deixa mentir.

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Fim da linha: o acidente da Áustria acabou com a relação entre Guy Ligier e Andrea De Cesaris

O italiano ainda disputaria o GP da Holanda, em Zandvoort, largando em 18º para abandonar por quebra do turbo de seu motor Renault. Laffite também desistiu naquela ocasião. Mas as múltiplas saídas de pista do estabanado – porém veloz – De Cesaris cobraram-lhe a conta. E Guy Ligier não teve outra alternativa que não despedi-lo do posto de piloto titular.

Às vésperas justamente do GP da Itália, em Monza, a equipe anunciou que Philippe Streiff, jovem piloto francês que estreara no ano anterior na F1 com um terceiro Renault no GP de Portugal, assumiria o carro #25 até o fim do ano. Streiff fizera boas temporadas na extinta F2 e na F3000, cumprindo um campeonato decente pela AGS.

Para sua estreia na Ligier, Streiff classificou-se exatamente à frente de Jacques Laffite, mas o desempenho dos carros foi ruim nos treinos. Mesmo assim, Philippe cumpriu uma boa corrida e chegou em 10º, com o experiente companheiro de time desistindo por problemas de motor. Na Bélgica, Streiff completou a disputa em 9º e Laffite, traído por uma pista com pontos molhados e secos em diferentes lugares – é bom lembrar que Spa-Francorchamps, que regressava ao calendário, tinha quase 7 km de extensão – bateu perto do fim.

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Em Brands Hatch, durante o GP da Europa, Jacques Laffite quebrou o recorde da pista

No GP da Europa, novamente Streiff conseguiu chegar ao fim, mostrando consistência: terminou de novo em nono. E Laffite, antes de abandonar, marcou seu nome no circuito de Brands Hatch com uma façanha: quebrou o recorde oficial da pista britânica com o tempo de 1’11″526. A vida do piloto estaria para sempre marcada por esse circuito, como veremos alguns parágrafos mais abaixo…

A penúltima etapa do campeonato de 1985 estava marcada para a África do Sul, país naquela época marcado pelo regime segregacionista do Apartheid. Às equipes da F1, foi recomendado boicotar o evento, mas Bernie Ecclestone bateu o pé firme e garantiu que a corrida aconteceria, mesmo que alguns times não fizessem a viagem para Kyalami. Renault e Ligier, por influência do governo do presidente François Mitterrand, foram aconselhadas a não disputar a corrida e assim cumpriram a recomendação.

Foi melhor assim, mas a Ligier esteve indiretamente presente ao evento, pois Philippe Streiff disputou a prova “emprestado” pela Tyrrell. E o piloto perderia, na última etapa do campeonato, a chance dos sonhos para ter um contrato que lhe garantisse a tempo inteiro no time de Vichy em 1986.

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A atuação no GP da Austrália custou a Philippe Streiff um cockpit na Ligier em 1986

Mesmo largando em 18º com Streiff e em 20º com Laffite, a Ligier tinha boas esperanças de fechar o ano com uma performance decente na estreia do circuito urbano de Adelaide como sede do GP da Austrália. As quebras e acidentes favoreceram, afora o bom desempenho dos pneus Pirelli, que deixou Laffite e Streiff em segundo e terceiro, atrás do líder absoluto Keke Rosberg, quando faltavam 20 voltas para o final.

Nas últimas voltas, com o duplo pódio garantido, o veterano Laffite fazia sinais para o impetuoso Streiff não tentar nada que estragasse a corrida de ambos. Philippe tentou. E deu nisso aí do vídeo abaixo…

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Nada aconteceu ao carro de Laffite, que seguiu em frente e terminou em 2º lugar. Streiff, mesmo com a suspensão destruída, arrastou-se para concluir em terceiro e subir ao pódio. Mas o clima entre os dois azedou e Guy Ligier, é claro, não gostou nada do que viu.

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Laffite e Arnoux no lançamento do Ligier JS27 em Paul Ricard: a dupla da equipe francesa era a de maior média de idade da categoria para 1986

E como resultado, Philippe não viu a cor do contrato que lhe garantia como titular em 1986. O carro #25 teria um “novo” piloto: René Arnoux, já com 37 anos, assinou por pelo menos duas temporadas com o time azul e seria o companheiro de equipe de Laffite, cinco anos mais velho. Na média de idade, a dupla da Ligier era, disparadamente, a mais “antiga” da F1 naqueles tempos.

Com tanta experiência, a equipe tinha como pretensão repetir o mesmo desempenho de 1985, quando terminou o Mundial de Construtores com o 6º lugar, somando 23 pontos – sete vezes mais que em 1984. Além de Arnoux, chegou o diretor técnico Michel Tétu, ex-Renault, para comandar os trabalhos de projeto e desenvolvimento dos chassis. O novo JS27, mais baixo que o antecessor, era beneficado pelo motor Renault Turbo EF15, bem mais potente que o EF14B e que fora entregue ao time com a saída da Régie como equipe da categoria. E os pneus Pirelli, ponto alto do carro, continuavam por lá.

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Diante das arquibancadas entupidas em Jacarepaguá, Laffite persegue Arnoux rumo ao pódio no GP do Brasil

No GP do Brasil, a Ligier mostrou que era séria candidata ao posto de quarta força daquele campeonato, melhor que a Ferrari e incomodando Lotus, Williams e McLaren. A “velha guarda” estava em forma e Arnoux, de volta após quase um ano afastado, continuava veloz: fez o 4º tempo nos treinos, com Laffite em quinto. Na corrida, os dois tiveram ótima performance e Jacques garantiu o pódio com uma sensacional ultrapassagem no retão de Jacarepaguá sobre o companheiro de equipe, faltando 10 voltas para o final.

A dupla seguiu com boas performances em treinos nas corridas seguintes, em Jerez de la Frontera e Imola. Mas problemas mecânicos impediram que Arnoux e Laffite chegassem novamente aos pontos nestas duas corridas. Em Mônaco, os dois JS27 voltaram ao protagonismo: Arnoux veio de 12º e conseguiu um belo quinto posto, com Laffite logo atrás. Na Bélgica, Jacques chegou em quinto vindo de décimo-sétimo e no Canadá, Arnoux abiscoitou mais um pontinho com a sexta colocação.

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Velhos são os trapos: Laffite foi brilhante nas ruas de Detroit e chegou em 2º

No GP de Detroit, Laffite mostrou que além de ser um ótimo piloto de invejável preparo físico, também tinha muita sorte. Vários pilotos – inclusive René Arnoux – se acidentaram e o velho Jacques, aos 42 anos de idade, ainda era capaz de façanhas como terminar a corrida dos EUA em segundo, atrás de Ayrton Senna. Foi o grande momento da equipe na temporada de 1986.

Em Paul Ricard, com a pista diminuída por conta do uso de uma chicane que reduziu ao meio a reta do Mistral, Arnoux e Laffite voltaram a marcar pontos juntos pela 3ª vez no ano. E veio então o GP da Inglaterra, em Brands Hatch, no qual Jacques se igualaria à lenda Graham Hill como o recordista de participações em toda a história da Fórmula 1.

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A colisão com a McLaren de Keke Rosberg nos treinos do GP da Inglaterra: mau presságio para Laffite?

O fim de semana não começara bem para Laffite. Um modesto 19º lugar, muito abaixo do que vinha fazendo até aquela altura do campeonato, foi tudo o que o piloto francês conseguiu nos treinos classificatórios, repletos de problemas, que foram desde um injetor de combustível arrebentado até uma colisão com a McLaren do finlandês Keke Rosberg. Arnoux, por seu turno, largaria em oitavo.

A largada mal fora dada e Laffite, a bordo de sua Ligier #26 e vindo da décima fila do grid, não poderia prever que aqueles seriam seus últimos momentos na categoria.

Com ambas as pernas presas no cockpit, Laffite ficou mais de uma hora aguardando que fosse solto para receber o atendimento médico. Logo veio o diagnóstico: fraturas em ambas as pernas e na bacia. Para um piloto com 42 anos, prestes a completar 43, era a gota d’água. No dia em que igualava a histórica marca de Graham Hill, Jacques-Henri Laffite deixava a F1 como o piloto mais bem sucedido de toda a campanha da Ligier até aquela data.

René Arnoux fez outra bela corrida e chegou em 4º. Mas nada apagava a dor da perda da referência do time de Vichy. E a equipe precisava se decidir por um novo piloto para cumprir a reta final daquele campeonato.

O escolhido foi Philippe Alliot, que fizera duas temporadas pela obscura RAM e estava na Fórmula 3000, esperando por uma chance. Em sua estreia, no GP da Alemanha, em Hockenheim, abandonou por quebra de motor na 12ª volta, enquanto Arnoux chegou novamente em quarto.

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Coincidência (ou não): após a chegada de Philippe Alliot para o lugar de Laffite, a Ligier entrou em considerável declínio técnico e perdeu o 4º lugar no Mundial de Construtores para a Ferrari

A Ligier tinha 28 pontos até a décima etapa do Mundial de 1986 – mais que o dobro da Ferrari. E a saída de Laffite foi cruel para a escuderia, que experimentou um declínio técnico visível com a chegada de Alliot. O melhor grid até o fim do ano foi um 5º lugar de Arnoux no GP da Austrália, última etapa do ano. E Alliot marcou um único pontinho com a sexta posição no México.

De resto, os muitos problemas mecânicos também minaram a confiança do time: a Renault já tinha anunciado a intenção de se retirar como fornecedora de motores para o ano de 1987 e as quebras se tornaram constantes. A Ferrari, que vinha mal naquele ano, experimentou alguma melhora após a confirmação da chegada de John Barnard como seu novo diretor técnico e acabou superando a escuderia francesa como 4ª colocada no Mundial de Construtores.

Com 29 pontos somados aos 23 de 1985, a Ligier atingira um patamar aceitável dentro da F1 e também de sua rica história na categoria. Para 1987, a equipe anunciava um acordo de fornecimento de motores com a Alfa Romeo. E as consequências disso, saberemos no próximo post da série…

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