Especial Boesel, 30 anos: parte I, Jarama

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Jaguar XJR-8: com esse puro-sangue das pistas, Raul Boesel conquistou de forma histórica e inédita o título mundial de Endurance. História que será contada na íntegra aqui no blog

RIO DE JANEIRO – No próximo dia 13 de setembro, chegaremos a 30 anos de uma data redondinha e histórica. Em 1987, não foi só Nelson Piquet que alcançou a glória num campeonato da FIA. Raul Boesel conquistou até hoje um título tão histórico quanto inédito. Nenhum outro brasileiro desde então alcançou o feito do curitibano, então com 29 anos: o título de pilotos do World Sportscar Championship, então dominado pelos possantes protótipos do Grupo C.

Raul era cavaleiro e disputava provas de hipismo em meados dos anos 1970 até começar no automobilismo. Fez provas de Divisão 1 e em 1979 tomou parte da nascente Stock Car com os Opalas derivados daquele certame de Turismo do qual ele participara. Teve como adversários ninguém menos que Paulo Gomes, Alencar Júnior, Affonso e Zeca Giaffone, afora Ingo Hoffmann e muitos outros craques. Deixou ótima impressão e surpreendeu todo mundo quando em 1980 mudou para a Inglaterra e foi tentar a sorte na Fórmula Ford. O objetivo era bem claro: alcançar a Fórmula 1.

A ascensão de Boesel foi meteórica: em 1981 ele já estava disputando contra Jonathan Palmer, Thierry Tassin e Roberto Pupo Moreno a difícil Fórmula 3 inglesa. Ganhou três corridas e terminou o campeonato com 80 pontos e o 3º lugar na classificação. Recebeu a oportunidade de testar o McLaren MP4/1 – o primeiro carro construído em fibra de carbono a ganhar uma corrida da categoria máxima. E logo assinou com a March para chegar à F1, onde disputou 23 corridas em duas temporadas. Também guiou para a Ligier, mas nunca teve carros competitivos. Seu melhor resultado foi um 7º lugar no GP dos EUA-Oeste, em Long Beach.

No ano de 1984, sem chance na Fórmula 1, Raul foi visto até na Fórmula 2 Sul-Americana. Inclusive, aproveitou bem a oportunidade que lhe foi dada e venceu uma corrida no Rio de Janeiro. Em 85, assinava com a equipe Dick Simon Racing para fazer corridas em circuitos mistos da Fórmula Indy e as 500 Milhas de Indianápolis. Após um 13º lugar no campeonato de 1986, tinha tudo para acertar sua vida e ser companheiro de Mario Andretti na equipe Newman-Haas Racing. Mas consta que Mario vetou um novo companheiro de equipe e aí bateu o desespero em Boesel.

Sem equipe, para onde ir?

Aí o brasileiro leu na prestigiosa revista Autosport que a Jaguar recrutava pilotos para um teste visando o World Sportscar Championship em 1987. Raul telefonou, se ofereceu para o teste, viajou dos EUA até o circuito de Paul Ricard e deixou uma impressão tão boa em Tom Walkinshaw que assinou lá mesmo – em branco – com o chefe da equipe TWR, que pretendia derrotar a poderosa equipe oficial de fábrica da Porsche e os times clientes da marca germânica em busca do título. Depois, Raul assinaria a minuta de contrato oficial que lhe garantia, líquidos, £ 80 mil de vencimentos, mais as despesas de viagem.

À disposição, o brasileiro teria o protótipo XJR-8 com um motor V12 7 litros de aspiração normal que garantia potência de 700 HP, impulsionando 850 kg – um projeto do experiente engenheiro Tony Southgate, que implementou 64 modificações no bólido, em relação ao XJR-6 da temporada anterior. A Dunlop, que fizera pneus novos para o Mundial de Endurance, tinha a TWR-Jaguar e a própria Rothmans Porsche como suas principais clientes na guerra dos pneus contra a Michelin.

E a história desse campeonato será contada a partir de agora, aqui no blog. Da primeira a última etapa, relembraremos como Boesel foi campeão mundial de Endurance.

A temporada foi programada para 10 etapas. Sete delas seriam eventos com 1000 km de percurso, mais as 24 Horas de Le Mans – a cereja do bolo – e mais duas provas de “tiro curto”: os 360 km de Jarama e as 200 Milhas de Norisring, disputadas num peculiar circuito de rua e em duas baterias.

O início do campeonato foi em 22 de março de 1987, no circuito espanhol de Jarama, nas proximidades de Madrid. Pista apertada, travada e difícil, para qualquer tipo de carro. Especialmente os Grupo C, largos, potentes e pesados.

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Desenhado por Tony Southgate, o XJR-8 era uma evolução do carro de 1986: tinha um poderoso motor 7 litros com 700 cavalos de potência. O carro tinha apenas 850 kg de peso e corria com pneus Dunlop. Walkinshaw escalou Eddie Cheever ao lado de Raul Boesel e no segundo carro estavam John Watson e Jan Lammers

Vinte e quatro carros apareceram na lista prévia de entradas, mas apenas 18 treinaram e dezessete largaram. Eram nove C1 e oito C2 no grid. Na classe principal, havia três Porsche 962C da equipe Brun, campeã do ano anterior, duelando contra dois Jaguar da equipe TWR e com o patrocínio dos cigarros Silk Cut, fora dois outros alinhados pela Kremer Racing, um da Britten-Lloyd Racing e o solitário Rothmans Porsche de Hans-Joachim Stuck/Derek Bell.

Na divisão C2, os inscritos eram um Ecosse-Ford Cosworth, um protótipo URD-BMW, um Spice SE86C, três Tiga – sendo dois GC287 e um GC286, um Gebhardt-Cosworth, um Alba-Cosworth e um Argo-Zakspeed Turbo com a cilindrada aumentada para 1,9 litro.

Raul Boesel teria como companheiro de equipe no carro #4 o estadunidense Eddie Cheever, que após assinar a renovação com a TWR, fechou com a Arrows um contrato para voltar à Fórmula 1. Ficou acordado que Eddie disputaria as etapas em que não houvesse coincidência de datas e Tom Walkinshaw alocaria outros pilotos para trabalhar com Boesel nas demais corridas.

A dupla mostrou bom entrosamento e velocidade logo de cara: em Jarama, Eddie e Raul largaram da pole position com o tempo de 1’14″541. Foi a primeira vez em que os carros britânicos, que ganharam corridas no ano anterior, superaram os Porsches em ritmo de classificação. O carro #5 da dupla John Watson/Jan Lammers largou em segundo com 1’14″698.

Os tempos na qualificação foram muito próximos: Stuck classificou seu Porsche em 3º a 0″169 da marca de Eddie Cheever. Confiante, o grandalhão alemão diria: “é o melhor Porsche que já guiei na vida desde a vitória em Le Mans”.

Com uma mistura muito empobrecida de combustível e ar no motor de seu Porsche 962C, Stuck teve uma péssima largada, o que encorajou Cheever e Lammers a sumir  nas primeiras voltas da disputa. Em seis voltas, abriram oito segundos. O alemão do Porsche #17 superou o italiano Mauro Baldi, que vinha em terceiro num dos carros da Kremer em quatro voltas e acabou beneficiado quando, na 45ª volta, a luz de alerta do óleo começou a piscar no painel do Jaguar XJR-8 do líder, indicando perda de fluidos. Cheever parou nos boxes para reabastecimento de óleo e gasolina e cedeu o lugar a Raul Boesel após o serviço completo. O brasileiro voltou na 4ª colocação, atrás de Lammers (o novo líder), Stuck e Baldi.

Boesel eventualmente assumiu a liderança em sua prova de estreia, quando os rivais pararam. Mas a equipe Jaguar, após a parada imprevista, sabia que o combustível não daria até o final – o tanque de 90 litros do protótipo não tinha autonomia suficiente para completar a distância prevista de 360 km sem precisar de um pit stop. Após os reabastecimentos e a parada de Raul, quem assumiu a liderança no #17 foi Derek Bell, seguido por John Watson.

Velhos amigos, os veteranos pilotos britânicos travaram uma bela disputa pela liderança – e Boesel juntou-se a eles, exercendo intensa pressão nas 20 voltas finais. Watson foi para o tudo ou nada e com um leve toque, desequilibrou o Porsche de Bell na curva Bugatti, suficiente para retomar o primeiro lugar. John ainda se viu às voltas com os problemas alheios e um acidente com o carro #15 da dupla Mauro Baldi/Jonathan Palmer, por conta de um pneu estourado, quase pôs tudo a perder.

Watson e Lammers venceram a etapa de abertura do FIA World Sportscar Championship de 1987 com 109 voltas completadas e apenas 1″632 de vantagem para Stuck e Bell. Raul e Eddie Cheever chegaram em 3º, completando o pódio. Nos boxes, Tom Walkinshaw festejava: conseguia provar que seus carros continuavam rápidos e poderiam derrotar a Porsche. Restava saber se a resistência, ponto-chave do campeonato, daria as cartas nas corridas longas.

Na classe C2, a Spice Engineering venceu: Fermin Velez/Gordon Spice chegaram na 9ª colocação geral e fecharam a disputa com uma volta de vantagem sobre David Leslie/Ray Mallock a bordo do Ecosse C286 Cosworth.

Próximo post: Jerez de la Frontera.

Comentários

    • Eu ia escrever a mesma coisa: “Só aqui mesmo pra lermos isso”. Leitura prazerosa, que vale apena.
      Parabéns Rodrigo Mattar.

      Lembrar que em 1987, a FIA reconhecia (e premiava) apena 3 campeões mundiais: F1, rally e World Sportscar Championship. Naquele ano, Piquet venceu a F1 e Boesel o WSC. Bons tempos.

  • Excelente iniciativa e merecida homenagem, Rodrigo! De fato é um capítulo muito importante no automobilismo brasileiro e ao qual não é dado o devido reconhecimento. Ansioso pelo próximo capítulo da série.

  • Onde assino sobre os comentarios acima. Obrigado Rodrigo por essa serie. E’ preparar a pipoca e saborear.
    E que ano foi 87 pra nos. Tinha 9 anos e lembro de saber do titulo do Piquet na escola quando da noticia do acidente do Mansell e que ele nao correria mais a temporada. Pensei “Serio que vai ser assim o desfecho?” Depois de um ano de batalha entre Piquet e Mansell o ingles ia pipocar assim no final. Mas depois bateu um alivio e satisfacao pois o titulo era nosso e isso e’ o que importa. Nao lembro muito sobre o titulo do Boesel pois nao teve muita repercussao na grande mi’dia. Mas lembro do meu pai, que acompanhava e lia revistas especializadas me falar desse titulo. Nao dei muita bola na e’poca mas hoje sei a dimensao que foi. E’ a maior conquista depois dos ti’tulos da F1.

  • Muito bom o texto, mas fiquei com uma dúvida logo no começo quando tu diz que nenhum outro brasileiro alcançou o feito do curitibano.
    O título do Zonta, na classe GT-1 do FIA GT em 1998 não seria equivalente?
    Guardadas as diferenças de organização enter um campeonato e outro, para mim ambos representavam o título máximo para carros esporte sob a chancela da FIA. Portanto, equivalentes.
    Parabéns pelo trabalho desenvolvido em mais essa “saga”!

    • Não é equivalente. As categorias eram absolutamente distintas. O FIA GT era originado do BPR Global GT Series. O Mundial de Endurance já existia desde 1953.

      Outro detalhe: por ser organizado pela SRO, o FIA GT não era oficialmente um campeonato mundial. Tinha a chancela da entidade pra existir. Mas não o status quo.

  • Fantástica lembrança, Rodrigo. O carro com esse patrocínio da Silk Cut era/é espetacular, mas o feito de Raul Boesel foi ainda mais. Obrigado pelo texto, não vejo a hora de ler os próximos!

  • Grato por você ser um TARADO por isso, Mattar! E o XJR-8 foi, ao lado do 917 K 1970, o mais belo protótipo já feito! Era um F1 com carenagem e cobertura mínimo e faróis! Ao contrário dos horríveis protótipos atuais, onde tudo é feito para gerar o máximo de pressão, as linhas tinham o objetivo de influir o mínimo possível na mecânica… Tudo isso com um motorzão V12 7.0!!!!
    http://jaguarfans.abundantdr.com/wp-content/uploads/2011/07/jaguar_xjr8_lm1987.jpg

  • Grande homenagem Rodrigo. Vou acompanhar tudo.
    Raul Boesel foi campeão mundial e miuto pouco reconhecido no Brasil.
    Belo trabalho, parabéns.
    Abraços,
    Alex.

  • Justíssima homenagem e excelente texto. Grandes lembranças. Sempre preferi as corridas de endurance em relação a por exemplo a F1 e este título foi um grande momento do automobilismo brasileiro, infelizmente pouco valorizado. Aguardo ansiosamente a continuação deste belo trabalho. Parabéns !

  • Como todos por aqui, vou também parabenizar pela iniciativa de contar a história desse campeão esquecido.
    Quando falamos em campeões mundiais, a maioria só lembra da F1…

    Sucesso para você Rodrigo.