Discos eternos – Carlos, Erasmo (1971)

RIO DE JANEIRO – “É preciso que você crie. Faça qualquer coisa, mas principalmente crie”. Com essas palavras, André Midani, o dínamo dos anos dourados da Phonogram/Philips no mercado brasileiro, circa 1960/1970, trazia Erasmo Carlos para a seleção brasileira da música – logicamente desfalcada de Milton Nascimento, na Odeon e Roberto Carlos, o maior vendedor de discos do país e da CBS.

O Tremendão vinha de seis trabalhos na RGE entre 1965 e 1970, calcados em sua grande maioria no gênero da Jovem Guarda, em parcerias com o amigo de fé e irmão camarada Roberto. Já no início de 1970, então com 29 anos, o cantor e compositor começava a se desvincular do rótulo de jovemguardista – até porque o movimento perdeu força e adeptos – adotando um outro estilo.

“Pô, Erasmo… como você mudou”, ouviu o cantor num show em Ipanema, na boate Flag. Na época, ele adotou uma vasta cabeleira, bigodes e até o som foi influenciado pelas novidades. O disco de 1970 é o que catapulta o cantor ao estrelato, com a sensacional e definitiva gravação de “Sentado à beira do caminho”. Nesse disco, ele homenageia a sua namorada – depois, mulher – Narinha em “Coqueiro Verde”, outro clássico de seu repertório.

Era um novo Erasmo Carlos. E com o auxílio de Lanny Gordin, Arnolpho Lima Filho (Liminha), Sérgio Dias (creditado como Diaz) e Dinho Leme, afora outros cracaços, cometeu Carlos, Erasmo, seu sétimo trabalho e primeiro na nova gravadora.

É sem dúvida um disco diferente de tudo o que o tijucano fizera até ali – do começo ao fim. Um trabalho ousado e que, das 13 faixas apresentadas, tinha menos da metade pertencendo à parceria RC/EC (quatro no lado B dos antigos bolachões), o que podemos considerar um avanço. A abertura encomendada junto a Caetano Veloso, que cometeu “De noite na cama” já merece toda a atenção, pelo arranjo com solos de guitarra, percussão com o berimbau de Dirceu “Xuxu” Medeiros, cuíca de Oswaldo Barro, palmas, coro e exclamações do Gigante Gentil. “Viva Dedé!” “Cadê Narinha?”, alusões à Dedé Gadelha (então companheira de Caetano Veloso) e à própria mulher.

Depois do entusiasmo inicial, “Masculino, feminino” (Homero Moutinho Filho) meio que quebra o clima, mas é legal ouvir o Tremendão numa balada dividida com Marisa Fossa (que fim deu?), antes da volta às porradas, com arranjos grandiloquentes de Chiquinho de Moraes e do mestre Rogério Duprat.

“É preciso dar um jeito, meu amigo” é uma das canções mais interessantes da dupla RC/EC que Erasmo pôs a voz – e percebe-se o cantor totalmente à vontade em meio às guitarras de Lanny Gordin e Sérgio Dias. Do maldito Taiguara – que, segundo consta, estava de olho em Narinha antes desta ceder às investidas de Erasmo – o Gigante Gentil gravou a libertária “Dois animais na selva suja da rua”, outra com sensacionais solos de guitarra e que não faria feio em nenhum disco d’Os Mutantes, colegas de Erasmo na Phonogram/Philips.

“Gente aberta” é outra das grandes canções dos Carlos que EC gravaria de seu jeito personalíssimo. Engraçado que Erasmo é tido como um cantor ‘menor’ porque seu timbre não é o mesma do parceiro Roberto – que, aliás, também não prima pela potência sonora. Bobagem pura. Voz cristalina, dicção perfeita, o cantor vai num crescendo até explodir num “eu vou” gutural, no final.

“Agora ninguém chora mais” é outra obra-prima deste disco. Com o luxuoso acompanhamento instrumental e mais um espetacular arranjo de Chiquinho de Moraes, a canção de Jorge Ben(jor) é completamente desconstruída em Carlos, Erasmo. Rockão pra ninguém botar defeito, que antecede outra bela balada duplocarlista, “Sodoma e Gomorra”.

Além de um disco surpreendente, é um álbum de tremendos contrastes na abertura do ‘lado B’. Da faixa de cunho religioso para a sensacional “Mundo deserto”, que acabou sendo a versão definitiva de uma música depois gravada sem o mesmo impacto por Elis Regina. Além dos riffs de guitarra e da cama de sopros, a letra é uma das melhores de RC/EC.

Num mundo deserto de almas negras
Me visto de branco
Me curvo da vida, sofrida, sentida
Que deram pra mim

Num mundo deserto de almas negras

Sorriso não nego
Mas vejo um sol cego
Querendo queimar o que resta de mim

Vivo num mundo deserto de almas negras

Na bondade da verdade
Eu quero ficar
E não acredito no dito maldito
Que o amor já morreu
Tenho fé que o meu país
Ainda vai dar amor pro mundo

Um amor tão profundo, tão grande
Que vai reviver quem morreu

Aliás, negócio de “almas negras” em canção escrita por Roberto? Soa absolutamente surreal, considerando as manias que o Rei desenvolveria nos últimos tempos.

As baladas voltam com “Não te quero santa”, parceria de Sérgio Fayne com Vitor Martins e Saulo Nunes, antecedendo “Ciça, Cecília”, única faixa que não teve produção de Erasmo – ficou a cargo de Nelson Motta, encomendando um excepcional arranjo de sopros a Arthur Verocai.

O clímax do disco é atingido nas três últimas faixas. “Em busca das canções perdidas nº 2”, feita pelo paraguaio Fábio em parceria com Paulinho Imperial, é outra de espetacular arranjo de Chiquinho de Moraes, com discreta percussão, timbres limpos de guitarra e grande performance de Erasmo, antecedendo o toque de Midas de Rogério Duprat em “26 anos de vida normal”, dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, e na surpreendente “Maria Joana”, gravada com a base da Caribe Steel Band.

Uma ode à maconha? Roberto e Erasmo? Como assim?

Assim é, se lhe parece.

Só ela me traz beleza
nesse mundo de incerteza
Quero fugir mas não posso
Esse mundo inteirinho é só nosso

Eu quero Maria Joana
Eu quero Maria Joana
Eu vejo a imagem da Lua
Refletida na poça da rua
E penso da minha janela
Eu estou bem mais alto que ela

Eu quero Maria Joana
Eu quero maria Joana
Eu sei (eu sei)
Que na vida tudo passa
O amor (o amor)
Vem como nuvem de fumaça (fumaça)

Com tantas experimentações, tantas ousadias, não seria engano algum dizer que Carlos, Erasmo talvez tenha sido o disco mais tropicalista de quem, como ele, passou a léguas do movimento liderado por Gilberto Gil e Caetano Veloso. Mais uma amostra do valor da metade duplocarlista mais subestimada por conta da inevitável comparação entre o Carlos de Cachoeiro e o outro Carlos, da Tijuca, da Turma da Matoso.

E na minha opinião, Erasmo diz mais a mim musicalmente do que o próprio Roberto, embora reconheça que ninguém se transforma no maior fenômeno de vendagens de seu tempo por mero acaso do destino.

Ficha técnica de Carlos, Erasmo
Selo: Phonogram/Philips
Produção de Erasmo Carlos, Manoel Barembein e Nelson Motta (*)
Gravado nos estúdios Prova e RCA (São Paulo) e Companhia Brasileira de Discos – Cineac-Trianon (Rio de Janeiro)
Lançado em 1971
Tempo total: 39’04”

Músicas:

1. De noite na cama (Caetano Veloso)
2. Masculino, feminino (Homero Moutinho Filho) [Part. especial: Marisa Fossa]
3. É preciso dar um jeito, meu amigo (Roberto/Erasmo Carlos)
4. Dois animais na selva suja da rua (Taiguara)
5. Gente aberta (Roberto/Erasmo Carlos)
6. Agora ninguém chora mais (Jorge Ben)
7. Sodoma e Gomorra (Roberto/Erasmo Carlos)
8. Mundo deserto (Roberto/Erasmo Carlos)
9. Não te quero santa (Sérgio Fayne/Vitor Martins/Saulo Nunes)
10. Ciça, Cecília (Roberto/Erasmo Carlos) [* produção de Nelson Motta]
11. Em busca das canções perdidas nº 2 (Fábio/Paulo Imperial)
12. 26 anos de vida normal (Marcos/Paulo Sérgio Valle)
13. Maria Joana (Roberto/Erasmo Carlos) [Part. especial: Caribe Steel Band]

Comentários

  • Putz! Sonzeira, esse disco! Como é bom entrar em um site procurando bons textos sobre automobilismo (que sabia que encontraria aqui) e encontrar também essa ótima indicação sonora!
    Muito obrigado!

  • Parabéns pela crítica!!

    Vc consegue agradar tanto o setor técnico quanto o setor sentimental!
    Fazia tempo que não terminava uma leitura crítica de álbum com tanto gosto!
    Acabei de chegar da rua, sou de Salvador-Ba, estava com a minha bke na orla a ouvir “Carlo, Erasmo”, álbum histórico do Tremendão que já tardava a ouvi-lo por inteiro, antes faixas soltas, porém tenho que reverencia-lo! Que discaço! Quanto som! Quanta gente boa tocando e compondo! Produção de primeira!
    Um trabalho de entrega a um artista do bem total!
    Atiçou-me tuas indagações de algumas parcerias de EC/RC no álbum. Tenho uma ligueira impressão que exista um “contrato de gaveta” “um contrato de amizade” por assim dizer do Trenendão, em toda vez, numa determinada época, quando comounha só, ter a assinatura de Roberto.

    Mas…todavia,
    Eramo Carlos é um gênio!

    Parabéns de novo!
    Forte abraço!

    • É a impressão que tenho. Que algumas das canções não são genuinamente robertocarlescas, podemos dizer assim.

      Obrigado pelo comentário!

      Grande abraço!