50 anos sem Jim Clark

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Era nos carros de corrida que Jim Clark conseguia se sentir tão à vontade quanto ao pastorear ovelhas nas fazendas de sua família. O “Escocês Voador” morreu de forma precoce aos 32 anos, sem que a gente saiba dizer até onde ele poderia chegar na história do automobilismo

RIO DE JANEIRO – Sete de abril de 1968. Naquele dia, em Brands Hatch, acontecia a prova 1000 km BOAC, válida pelo Campeonato Mundial de Endurance. Exilado dos impostos do exigente Fisco britânico, morando na França, Jim Clark dosava sua cota de visitas ao território britânico, preferindo disputar em Hockenheim, na Alemanha, uma prova sem muita importância de Fórmula 2.

Sete de abril de 1968. Naquele dia, em Hockenheim, ao sofrer um acidente a mais de 200 km/h pilotando um monoposto Lotus 48B, Jim Clark perdia a vida aos 32 anos.

Começava a nascer a lenda, o mito. Um dos maiores pilotos da história do automobilismo e, segundo quem viu, o maior de todos eles.

James Clark Junior nasceu em 1936 no dia 4 de março em Kilmany, na região escocesa do Fife. Foi um dedicado pastor de ovelhas, único homem numa família de cinco filhos e quatro irmãs, não sem antes travar o primeiro contato com os carros na tenra idade de oito anos. É engraçado imaginar o pequeno James, que ainda não tinha virado Jim, tentando enxergar alguma coisa ao guiar o carro de seu pai, James Senior. Mas aconteceu.

Com 15 anos, em 1951, ele já se interessava mais a fundo pelas corridas e a partir de 1953, começou a tomar parte de eventos amadores de Rali. Daí foi um choque quando Jim anunciou que tentaria se profissionalizar como piloto de competição. Ele era um rapaz tímido, incapaz de desobedecer aos pais. Mas tomou coragem e foi em frente. Era achincalhado pelos vizinhos como o “idiota local”. E esperou fazer 20 anos de idade – o mínimo exigido na época – para enfim ingressar no automobilismo.

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Jim guiou de um tudo no automobilismo. Não enjeitava corrida. Ganhar era com ele mesmo. Aqui, ele acelera um Ford Cortina no British Touring Car Championship (BTCC), em 1964

No início da carreira, sentou a bunda em prosaicos DKW – modelo Sonderklasse – mas seu primeiro bólido de corrida foi mesmo um Sunbeam MK3 que possuía. Andou também de Porsche pela equipe de Ian Scott Watson, que lhe deu a primeira oportunidade no esporte. Mas Clark queria voos mais altos e logo assinaria com a Border Rievers – uma organização melhor estruturada, e na qual também não ficaria muito tempo.

Tanto que ao conhecer o engenheiro Anthony Colin Bruce Chapman, que fundara bem pouco antes disso uma marca de carros esporte e de competição chamada Lotus, logo guiou um modelo Elite – ainda alinhado por Scott Watson. Pela Border Rievers, ainda conseguiria o 3º lugar geral nas 24h de Le Mans com um ultrapassado Aston Martin, conduizdo em dupla com Roy Salvadori.

Da Fórmula Júnior – que depois se chamaria Fórmula 3 – até a Fórmula 1, o caminho de Jim foi curto: menos de um ano. Clark disputaria sua primeira corrida na categoria máxima em 1960, com um 11º lugar no grid de largada do GP da Holanda, em Zandvoort. Seu carro era o modelo 18 da Lotus com motor Climax. Na F-1, ele jamais correria para nenhuma outra escuderia.

Até 1962, Jim era considerado um piloto ainda irregular. Oscilava os desempenhos, o que era natural por ser um novato. Mas era rápido e impetuoso. Já tinha alcançado dois pódios – nos GPs da Holanda e França, ambos em 1961 – quando se envolveu no brutal acidente que custou a vida de 14 espectadores e do então líder do campeonato, Wolfgang Von Trips, no GP da Itália, em Monza. Até o final de sua vida, Clark ouviria de muitas bocas que ele foi o responsável pela morte do alemão da Ferrari.

Mas Colin Chapman silenciosamente provocaria uma revolução nos conceitos do esporte e Clark faria parte dela: quando o novo Lotus estreou em 1962 no GP da Holanda (sempre ele!), havia algo de diferente e que não era tão visível aos olhos leigos. Mas que Jim entendeu muito bem. Tratava-se do primeiro Fórmula 1 com chassi monocoque, incorporando no automobilismo as primeiras lições aprendidas por Colin na engenharia aeronáutica.

O escocês fez a festa com cinco pole positions e ganhou três provas. Poderia ter se consagrado campeão mundial pela primeira vez, mas um vazamento de óleo no motor Coventry-Climax acabou com o sonho dele e da Lotus.

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Na Fórmula 1, construiu uma relação de confiança com Colin Chapman e – caso raro nos dias de hoje – foi fiel ao engenheiro e à Lotus até o fim

Em 1963, veio o troco. Numa época de 10 corridas, das quais seis valiam pontos para o campeonato, Clark foi quase perfeito. Largou na posição de honra do grid mais sete vezes (quatro delas em sequência). Conquistou nove pódios em dez. E venceu sete vezes – quatro seguidas. Em pontos válidos, havia 54 em disputa. Clark conquistou todos. Fechou o ano com 73 pontos brutos. Um massacre.

À sua velocidade natural, que fez surgir o apelido “Escocês Voador”, por conta das pole positions que começava a colecionar uma atrás da outra, Clark aliava também uma inteligência que desnorteava os adversários.

A tática, revelada a um jornalista, era de dar o máximo na largada, fazer a segunda volta em tempo recorde e, ganhando de dois a três segundos sobre seus perseguidores, depois bastava manter a diferença ou aumentá-la à razão de um segundo por volta. Parecia simples, mas não era bem assim.

“Você deve ter notado que, nesse ponto, eu passo a andar um pouco mais lentamente e espero pela reação dos outros pilotos”, comentou. “Se eles resolvem aumentar seu ritmo, então eu também recomeço a dar maior velocidade. Surpreendentemente, basta que eu diminua meu ritmo para que os outros o façam. Após algumas voltas eu reacelero, mas os outros não. E assim minha vantagem aumenta”, disse Jim.

No ano seguinte, os èxitos não se repetiram com a mesma frequência e ele perderia o título para o compatriota John Surtees. Fez também sua estreia nas 500 Milhas de Indianápolis com um carro já dotado de motor traseiro enquanto muitos ianques ainda corriam com roadsters dianteiros. Foi pole e liderou. Deveria ter vencido se a suspensão não quebrasse. A grande recompensa veio quando a Rainha Elizabeth II o condecorou Cavaleiro do Império Britânico.

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Não havia desafio que Chapman e Clark juntos pudessem recusar. Após uma primeira tentativa em Indianápolis, venceram no templo sagrado dos ianques com média recorde e tudo

Mordido pela perda do título, Clark começou 1965 com o mesmo apetite de sempre – mesmo tendo aberto mão de disputar o GP de Mônaco (que jamais venceria). Voltou a Indianápolis e daquela vez conseguiu a vitória, à média recorde para a época de 242,5 km/h. Foi um ano de sonho para o Escocês Voador, que culminou com o título mundial e outra campanha de 100% de aproveitamento dos pontos válidos.

Algumas das conquistas foram extremamente difíceis. No toró que caiu em Spa-Francorchamps, Clark foi celebrado como um hábil piloto em pista molhada, pois sobreviveu às terríveis condições naquela pista. Foi honesto ao revelar, logo depois: “Venci porque tirei o pé do acelerador menos vezes que os outros”.

Na Inglaterra, sem pressão de óleo no motor Climax de seu Lotus 33, desligava a chave do contato nas curvas, tornando a religá-la nas retas, para manter o mínimo de pressurização no propulsor. Foi suado, Graham Hill quase o ultrapassou, bateu o recorde da pista de Silverstone, mas não foi possível superar Clark, que venceu por escassos três segundos e dois décimos. Na Alemanha, ao triunfar no Ring de Nürburg, sacramentou o bicampeonato.

Em 1966, o tricampeonato foi sacrificado pela invencionice da BRM em fornecer um motor de dezesseis cilindros em H (isso mesmo!) que não casou com o chassi do Lotus 43, novo modelo desenhado e concebido por Colin Chapman. Foi um ano inteiro de malogros, onde salvaram-se o 2º lugar em Indianápolis e a vitória no GP dos EUA, em Watkins Glen. Mas no ano seguinte, Clark teria a arma que precisava para mostrar que ainda era um piloto à frente de seus adversários.

Novamente pondo a cuca para trabalhar, Chapman fez sair o Lotus 49, considerado o mais moderno Fórmula 1 de sua época. O carro tinha estrutura autoportante, ou seja, foi desenhado para ser uma espécie de elemento de sustentação de motor e suspensão. Para completar, Mike Costin e Keith Duckworth apresentavam ao mundo o motor Cosworth DFV V8, que ao longo de mais de uma década e meia, seria o sustentáculo de 95% das equipes que viriam a fazer parte da categoria nos anos seguintes.

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Uma cena que se repetiria 25 vezes na Fórmula 1 – recorde histórico por mais de cinco temporadas – e outras tantas ao longo da carreira iniciada em 1956

Na estreia do novo conjunto em (onde mais?) Zandvoort, no GP da Holanda, Clark ganhou a prova. Venceu ainda mais três GPs e igualou a marca de Juan Manuel Fangio, com 24 conquistas em 71 GPs disputados. Mas as cinco quebras custaram caro ao Escocês Voador, que viu o tricampeonato escapar e o título cair no colo de Dennis Hulme, que não era espetacular como Jim, mas era tremendamente consistente.

Clark bateu o recorde histórico de Juan Manuel Fangio ao vencer pela 25ª vez na abertura do campeonato de 1968, em Kyalami, na África do Sul. Antevia-se mais um ano de espetáculos pela frente, tão bom quanto 1963 e 1965.

Mas infelizmente a morte chegou antes e pregou-lhe uma peça numa curva do veloz circuito de Hockenheim. Ele perdeu o controle do carro numa pista molhada pela chuva, pegou uma valeta e bateu numa árvore à margem do traçado. Morte instantânea.

A tragédia abalou a sala de imprensa dos 1000 km BOAC, que como disse no primeiro parágrafo, Clark poderia ter disputado com um protótipo Ford da equipe de Alan Mann. Mas o acidente fatal pôs um ponto final numa carreira de intenso brilho e de números expressivos, que perduraram por muito tempo.

Cinco anos se passariam até que outro escocês – já rival de Clark em meados de 1960 – conhecido como Jackie Stewart, superasse o seu total de vitórias na Fórmula 1.

Outro recorde ficou mais tempo imbatível: 21 anos se passaram até que Ayrton Senna da Silva ultrapassou suas 33 poles e ficou, também por um bom período, como o recordista absoluto de largadas na primeira fila.

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James Clark Junior, simplesmente Jim Clark. O inesquecível “Escocês Voador”. Um gênio da raça e um dos maiores do esporte a motor em todos os tempos

Clark e Senna tiveram em comum a velocidade, os títulos e números superlativos. O escocês disputou 72 GPs e venceu 25 deles, 34,72% do total. Fez 45,83% de poles, se considerarmos a proporção de corridas ao número de vezes em que largou na frente. Conquistou 28 recordes de volta em prova (38,89% do total de corridas) e 32 pódios, cerca de 44,4% das 72 corridas em que tomou parte.

Jim liderou também um total de 1943 voltas, perfazendo 10.125 km na primeira posição – superando os 9.316 km em que Juan Manuel Fangio esteve na frente. Esse foi outro recorde que demorou anos para cair e só seria superado por Ayrton Senna. Depois, até Alain Prost o superaria também e Michael Schumacher pulverizou essa estatística, chegando a mais de 24 mil km no comando de provas da Fórmula 1. Mas observe-se que Lewis Hamilton e Sebastian Vettel, que vêm sendo dominantes nos últimos anos, também se tornaram detentores de mais de 10 mil quilômetros liderados na categoria.

Enfim, um texto como este é muito pouco para que recordemos e exaltemos aquele que é saudado até hoje por quem o viu guiar e pelos que também não o viram – mas que, como eu, tiveram acesso aos seus feitos e números – como um dos gênios da raça da história do esporte a motor.

Qualquer coisa que se diga sobre James Clark Junior é pouco perto do que ele fez e poderia ter feito, se a morte não o pegasse pelo contrapé.

Comentários

  • Excelente Rodrigo.

    Clark foi um grande expoente, talvez o melhor de todos até hoje.
    Alguns estudos feito com as ferramentas limitadas da epoca mostraram que Jim tinha sempre o mesmo traçado, volta após volta, fosse andando no limite ou ja controlando o ritmo.
    Poderia acrescentar aqui muitos dos feitos de Jim, mas sugiro a quem puder que leia o livro sobre a vida do campeão, se não me engano escrito pelo Bill Gavin. A versao em.portugues deve existir por ai em sebos ou com colecionares. Considero imprescindível pra quem gosta de automobilismo.
    Como curiosidade vao aqui duas lembranças:
    1 – era comum que Clark quebrasse o recorde da pista nas primeiras voltas da corrida, quando imprimia um ritmo fortíssimo pra escapar do pelotão. O que deixava abismado a todos eh que nessas ocasiões, de tanque cheio e com calibragem dos pneus pra corrida, ele era bem.mais rápido do que na volta da pole !!!
    2 – Jim detestava Hockenheim
    Considerava um circuito idiota, posto que o que um bom piloto ganhava no misto (o motodromo), perdia na guerra de vácuo nas duas longas retas que cortavam a floresta, na ida e na volta. E foi morrer logo numa dessas retas…

    Rodrigo, hoje acordei pensando nos 50 anos da morte de Jim. Me lembrei que ano passado eu falei sobre isso contigo (me enganei nas datas) e vc me respondeu que iria fazer um belo post em 07/04/18. Vim conferir logo cedo, e, realmente, vc não esqueceu!!!!
    Valeu, amigo !!!!

  • Bela homenagem ao único ídolo que tive no automobilismo, Rodrigo. Para mim, o maior de todos. E quero lembrar também de uma de suas maiores corridas, GP da Itália 67, em Monza. Foi uma das poucas corridas que passaram aqui, em VT preto-e-branco; o que ele fez na pista ficou na história do esporte.
    Cinquenta anos depois, ainda me lembro do Oduvaldo Cozzi, locutor legendário de esportes, dando a notícia de sua morte na tv. Fiquei péssimo, não comi mais nada e não falei com mais ninguém naquele dia. Nessa época, nós que gostávamos de corrida éramos uma pequena tribo…

  • Alvaro,

    Eu estava as vésperas de fazer 14 anos (14/04), e Clark era meu idolo no automobilismo internacional (no Brasil, nesse tempo o meu idolo era o Bird… e eu sonhava com o Bird andando de F1 e disputando com o Clark).
    Foi a primeira vez que chorei pela morte de um esportista. Eu tinha um tio que era meio maluco (oficialmente maluco) e ele me ligou logo cedo, na manhã de segunda feira: “Você viu que seu ídolo morreu ?”, Achei que ele estava me sacaneando, como era comum fazer. Mas ele insistiu: “vai ver no O Globo”. Minha mãe assinava o jornal, e eu fui ver, ainda não acreditando no tio. Mas, era verdade.
    Nem fui a aula.
    Rodrigo, ainda somos uma tribo, hoje. Mas naquela época eramos uma tribo infinitamente menor !!!!

    • Pois é, Antonio… E o acesso a informações era mínimo, além de chegar com muito atraso. Imagine se a gente tomaria conhecimento do acidente do Senna, 26 anos depois, só numa resenha esportiva noturna ou pelo jornal do dia seguinte!

      Pelo menos a tribo aumentou e nós sobrevivemos para ver hoje uma turma como o Rodrigo Mattar, o FG e outros, que nos presenteiam com toda essa informação de qualidade!

      • Verdade, Alvaro.

        A gente so ficava sabendo o resultado das corridas de F1 pelas revistas especializadas do mes seguinte. Atpé porque as revistas estrangeiras chegavam aqui com mais de 2 meses de atraso !!!!
        Os jornais não noticiavam quase nada, a não ser acidentes e mortes.
        Me lembro que em 1970, quando já havia uma certa cobertura feita pelos maiores jornais, por conta dos feitos do Emerson na Formula 3 inglesa, a noticia da vitoria do Rato no GP dos USA foi dada no domingo a noite, no programa do Flavio Cavalcanti. O ator Walter Foster (um dos jurados do programa) foi encarregado de da a noticia, interrompeu o desenvolvimento normal das atrações e falou: “O brasileiro Emerson Fittipaldi acaba de se “tornar campeão de F1” (sic) no GP dos USA, numa corrida que aconteceu no autódromo de Watkins Glen!.

  • Com certeza um MITO!!! É o único piloto que fui fã. Ainda quero conhecer sua cidade e seu museu. Obrigado Rodrigo.

  • boa tarde. Apaixonado pela fórmula um, bem antes de Emerson e Ayrton, estou pesquisando e fazendo um álbum sobre o Jimmy e fiquei surpreso pela quantidade de numeração que competiu: só o Lotus Cortina MK1 , MK2 e o E14LS216 nada mais de 28. A Lotus 18 Climax Jr até Lotus 49 Type Jr foi utilizado 38carros em toda sua carreira, sem falar em outros !! É isso uma curiosidade. sds