Lenda. Gênio. História. Imortal.

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Ele deu várias voltas na morte, por mais de quatro décadas. Hoje, 20 de maio de 2019, Andreas Nikolaus Lauda se despede da vida e se torna imortal (Foto: Rodrigo Berton/Grande Prêmio)

RIO DE JANEIRO (Tristeza profunda) – Nada do que este escriba disser nas próximas linhas será suficiente para descrever o quão gigante foi Andreas Nikolaus Lauda, que deixou esta vida nesta segunda-feira, véspera de um dos finais de semana mais icônicos do automobilismo mundial.

Após o dia da labuta, de gravação do Fox Nitro, veio a surpresa, o espanto e a tristeza. Pipocavam boatos sobre a morte do tricampeão mundial de Fórmula 1 e eles foram infelizmente confirmados. Uma insuficiência renal tirou a vida de um dos maiores pilotos que já existiu, quase três meses depois de completar 70 anos de idade e de passar por um transplante de pulmão.

Não foi à toa que Niki ganhou três vezes o título de maior piloto da principal categoria do automobilismo. E poderiam ter vindo outros mais. O grave acidente sofrido em 1º de agosto de 1976, no GP da Alemanha, talvez o tenha tornado maior do que ele realmente foi – dentro e fora das pistas.

Porque Lauda, que na época rumava célere para o que poderia ser um bicampeonato histórico ao volante de uma Ferrari, coisa que antes dele só Alberto Ascari havia conquistado em 1952/53, lutou pela vida como um leão.

Arrancou forças de onde não tinha, provavelmente por sua privilegiada condição física de esportista, para vencer a morte sorrateira, driblar a extrema-unção que lhe foi ministrada por um padre enquanto jazia no leito de um hospital em Mannheim para, 42 dias após o acidente, voltar a competir, com as marcas no rosto, no corpo e muito possivelmente na alma, que ficariam para sempre, até o fim de sua vida.

Formula One World Championship
Niki Lauda e James Hunt protagonizaram uma das lutas mais titânicas da Fórmula 1 em todos os tempos. Felizes foram os que viram a temporada de 1976, um momento inesquecível do esporte

Num esporte que não é permitido ter medo, Lauda foi corajoso ao admitir que sentiu medo ao sentar na Ferrari 312T numa pista cheia de poças e sem condições de segurança para lutar pelo título mundial contra James Hunt. Perdeu aquela que foi considerada uma das maiores batalhas da história, mas nunca deixou de provar o quão foi gigante.

Ainda daria a resposta que Daniele Audetto – que lhe desgostava – e Enzo Ferrari mereciam, antes de ir para a Brabham, elevando o status dos pilotos de ponta da Fórmula 1. Se a maioria na época passou a fechar bons contratos, muito se deve ao austríaco, que aos 30 anos desistiu de tudo.

“Cansei de andar em círculos”, teria dito a Bernie Ecclestone antes de sumir no paddock do GP do Canadá, em Montreal, e deixar o patrão na mão.

Os aviões eram outra paixão de Lauda, que para salvar sua primeira companhia aérea da falência, fez uma volta triunfal aos cockpits em 1982, pela McLaren. Na época, conseguiu convencer John Hogan (leia-se Marlboro) e Ron Dennis a receber US$ 3 milhões de salário. Não só voltou, como foi competitivo como sempre fora antes da aposentadoria, venceu corridas e mais um título, aos 35 anos.

Coisa de gênio.

Mas tudo tem um limite e Lauda chegou ao dele no fim do campeonato de 1985. Pendurou o capacete, mas nunca o vimos longe da Fórmula 1. Depois, ele se tornou dirigente da própria Ferrari, da Jaguar e recentemente, era uma importante figura na organização da Mercedes-Benz, a maior força da categoria nos últimos anos.

Engraçado que víamos o Lauda como aquele sujeito meio ranzinza, durão até e incapaz de um sorriso, por muito tempo. Mas acho que a idade e a vida fizeram o austríaco relaxar e Niki estava até menos compenetrado e muito mais descontraído.

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O Lauda da vida real foi o consultor do Lauda da ficção. Daniel Brühl foi brilhante ao interpretar o piloto austríaco em “Rush”, nos maneirismos, no sotaque, em absolutamente tudo

De repente, a gente percebe que tudo é etéreo. Que até aquele rapaz dentuço que chegou aos 22 anos à Fórmula 1 por meio de empréstimos bancários, tomados em instituições que acreditaram nele – e que inclusive ousaram desafiar o poder do sobrenome Lauda, já que o velho Hans, avô do piloto, era muito influente no círculo econômico de seu país – provou que era bom o bastante mesmo após deixar dúvidas a respeito quando andou de March e BRM – até ele também não resiste ao tempo.

Felizmente, tivemos Ron Howard. Tivemos o livro “Corrida para a Glória”, de Tom Rubython. Tivemos “Rush”. Tivemos Daniel Brühl como um Lauda redivivo e um Chris Hemsworth igualmente brilhante como James Hunt.

A partir de hoje, os dois se encontram noutro plano.

E Andreas Nikolaus Lauda, a quem homenagemos no dia de sua partida, torna-se imortal.

Como muitas de suas frases que o blog republica agora.

“Não fale demais. Concentre-se no objetivo e alcance-o.”

“Felicidade é um inimigo. Isso enfraquece você. De repente, você tem algo a perder.”

“Realmente, você deve discutir as derrotas porque você aprende muito mais com o fracasso do que com o sucesso.”

“Muitas pessoas criticam a Fórmula 1 como um risco desnecessário. Mas como seria a vida se apenas fizéssemos o que é necessário?”

“Uma corrida não é ganha até que acabe.”

“Eu já passei por muitas coisas e percebo que o futuro não pode ser controlado. Você sempre pode aprender a superar dificuldades.”

“Quanto menos você fala, mais tempo você tem para as coisas essenciais.”

“Sempre que vejo algo que me desafia, eu aceito.”

“Você entende que é muito fácil morrer e você tem que organizar sua vida para lidar com essa realidade.”

“Para ser honesto, é chato falar sobre vencer.”

Comentários

  • Queria escrever algo, mas sabe como é que é, né Rodrigo!
    Me entrou um cisco no olho e o danado não sai de jeito nenhum. . .
    Fica para depois.
    Mas consigo pelo menos dizer uma coisa: “Obrigado, Rodrigo”.
    Seu texto foi primoroso, mais uma vez.

  • Triste a partida de um batalhador, um lutador como Lauda. Dizer que é cedo, aos 70 anos, com tantas sequelas e tantas doenças, não seria muito preciso. Prefiro dizer que fará muita falta.
    Seu espirito lutador, sua persistência, sua concentração quase obsessiva, foram os “drives” que o levaram ao patamar que atingiu na historia do automobilismo. Sem duvida uma figura de muito destaque, um tri-campeão mundial não pode ser descrito como um piloto de F1 normal.
    Me lembro de Lauda correndo com um March de F-2 adaptado para F1, sempre rodando na pista, tido como um piloto trapalhão. Mas sua persistência em desenvolver esse carro desaguou no 721X que era mais rápido que o derivado do 711. Andou bem melhor com as BRM, mesmo prejudicado pelos Firestone, que naquele momento não se ombreavam aos GoodYear dos outros (Pace também sofreu do mesmo mal, com o TS14 e 16). Brilhou com as Ferrari 312, e conquistou com elas seus 2 primeiros titulos.
    Assisti Lauda, ao vivo, com a Brabham, e confesso que não gostei do estilo de pilotagem, telegrafando muito, inserindo o carro de uma forma bruta. Verdade que Ayrton também telegrafava muito, mas tinha um estilo de condução muito mais suave, mesmo no limite..
    Diria que Lauda não era um piloto “natural”, como Gilles, Peterson, Moco, mas era um cara com alto poder de concentração, inteligente, que sabia ajustar a maquina a sua forma de guiar, para tirar o maximo dela de forma inteligente. Pra mim, se assememelhava mais ao Prost do que a Senna, Piquet ou Emerson. E estava longe da habilidade natural de Gilles, Pace, Peterson..
    Em seu terceiro titulo, foi brilhante ao vencer Prost, mais jovem, mais motivado, e que contava com um empurraozinho extra do Ballestre.
    Na aviação foi também extremamente diligente, pilotava seus proprios aviões, um dirigente de vanguarda. Soube superar momentos dificilimos, como o acidente com o 767 da Lauda Air, e, quando montou a segunda empresa, regional, optou pelos modernos Embraer 190, o primeiro dos quais veio pessoalmente buscar no Brasil, e voltou pra Europa pilotando.
    Como dirigente da F1, teve altos e baixos, mas sempre lutou bravamente por aquilo que acreditava.
    Um grande homem, sem duvida. Grande Campeão.
    Vai fazer falta.
    E fez historia.

    • Legal sua comparação do estilo de pilotagem, Antonio. Eu não tive o prazer de ver todos esses nomes ao vivo, então, sua descrição me ajuda a entender melhor a época. Eu poderia dizer que o austríaco foi “der” professor do “le” professor?

      • Nunca pensei sobre isso. Mas aletrtado por voce, diria que pelo menos durante o confronto na McLaren, com um Senna mais rapido, mais audacioso, e muito determinado, Prost deve ter se espelhado muito na perseverança a na busca por melhor acerto, caracteristicas fundamentais de Lauda, para encarar o brasileiro. Não esqueçam os que antes disso, Prost teve de encarar o proprio Lauda na McLaren, porém com papeis inversos. E deve ter aprendido muito com o austriaco..

    • Caro Antonio, vi o Lauda pilotar de tudo e posso confirmar que tinha grande capacidade de adaptar o jeito de pilotar ao carro que tinha em mãos. Realmente ele brigava um bocado com o Brabham, mas com Ferrari, Mc Laren e mesmo com a BRM, tocava mais suave. Em 1973, só vi 4 pilotos fazendo a curva do Lago de maneira perfeita: ele, o Emerson, o Stewart e o Cevert. Depois fui ao boxe, vi o jovem dentuço conversando com os mecânicos e falei com um amigo que ele poderia vir a ter futuro…
      A única vez que não senti firmeza na pilotagem dele foi correndo de kart, em Milão, 1987. Corrida comemorativa do final de temporada, um frio de zero grau, ele tomou um couro sem tamanho do Piquet, do Rosberg e do Prost. Depois vim a saber que nunca tinha corrido de kart na carreira!

      • Alvaro,
        Que bom que voce comentou do Emerson: a tocada dele era muito proxima da perfeição !!! Ele era rapido, andava de lado, e tinha um controle de carro fenomenal. Pena que ficou conhecido apenas como um piloto cerebral…(que de fato era, mas era muito apido também, e isso quase ninguém lembra).
        Quanto a Lauda, os BRM P153-160, e as Ferrari 312 (toda a serie de 1974 a 80), eram carro muito doceis de guiar, ajudado pela distribuição de potencia suave homogenea dos V12. Isso ajudava a tocar suave. Já os carros do Gordon Murray eram notorios por sair de frente, e cobravam uma tocada mais arisca. mas quem lembra do Moco guiando os BT44 e 45 não via não percebia qualquer traço de brutalidade. Ele demorou a se entender com o carro, mas, depois….era show de ver.
        Voltando ao Lauda, veja o que o Simon Pagenaud falou no twitter: “Lauda has proved that works pays-off”.

  • Suas palavras ajudam a confortar um pouco a grande tristeza dessa manhã. Lauda era um homem de muitas faces, um ranzinza amável, se podemos dizer assim. Tenho profunda admiração de sua incrível capacidade. Uma pena sua partida, inegável o seu legado.

  • Lembrei agora de uma situação curiosa na vida de Niki: cerTa vez, acho que na Jaguar, falou que esses carros modernos e cheios de eletronica, poderiam se guiados até por macacos. Questionado, foi lá e sentou a bunda no carro, já com bastante idade. Ao que consta, tentando dar uma volta veloz, rodou mais de uma vez….kkkkk. E depois teve de engolir as proprias palavras. Mas certamente, sendo do jeito que era, a experiencia deve ter ajudado na sua relação com os pilotos, a partir dai.

    Rodrigo, voce tem mais detalhes desse “treino” do Lauda, pra contar pra gente..?

    • Antonio, querido amigo, tenho as mesmas informações que você. Ele soltou a famosa frase dos carros que poderiam ser guiados por macacos, foi desafiado, sentou no Jaguar e rodou. Várias vezes.

    • Mas o Lauda disse certo, macacos treinados coisa que ele nao era. O homem ja tava um cadinho véi, ja fora de atividade a tempos sem contar que os carros que ele guiou eram MUITO diferentes desse Jaguar aí. Tenho certeza que se chegassem pra ele e dissessem “Lauda vc tem um mes pra treinar e dar uma volta boa com esse carro”, se ele topasse conseguiria apos treinar.

  • Um dos grandes ícones da história do esporte. Mostrou toda a sua coragem em dois momentos: primeiro ao voltar ainda ferido ao volante no GP da Itália de 1976, e depois ao admitir que abdicou da luta pelo título por sentir medo de se acidentar e ter que passar por tudo aquilo novamente. Um grande homem, acima de tudo. Que ele possa descansar em paz.

    PS: Corrida para a Glória é o melhor livro que eu vi na vida.

  • Morreu o homem, criou-se a lenda. Como se já não fosse suficiente tudo aquilo que gravita e gravitou em torno do atleta Andreas Nikolaus Lauda. Ressurgido das chamas e das cinzas uma vez, dessa vez, “ela”, matreira, não deu a ele mais uma chance, infelizmente. Perde a F1, perdem os fãs, perde o mundo do automobilismo. Perdemos todos nós, que acham que uma corrida não é simplesmente uma corrida…

  • Grande Lauda. O seu acidente em 76 foi a sorte de Hunt. Lauda era superior e seria o campeão não fosse a batida em Nurburgring, a não participação nos 2 GPs subsequentes, a volta sem estar plenamente recuperado fisicamente e o abandono em Fuji, Antes da batida estava 5×2 em vitorias para Lauda. Digamos que foi uma rivalidade “circunstancial” e muito amplificada principalmente pela mídia inglesa.
    Em 77 Lauda ganhou o titulo com 2 provas de antecipação com Hunt terminando em 5º.
    Acompanhei F1 nos anos 70 e a maior rivalidade daquela década foi Stewart x Fittipaldi em 72-73. Muito maior que Lauda x Hunt. Esta sim seria merecedora de livro e filme. Ficou em 1×1 com Fittipaldi sendo atrapalhado por Peterson no 2º embate. O melhor piloto de fins dos anos 60 e princípios dos 70 contra o jovem desafiante. Stewart tem uma media de vitorias de 27%, acima de todos os demais tricampeões e superior inclusive aos tetra Prost e Vettel. Creio eu que depois dele ninguém conseguiu 27 vitorias nas 99 primeiras corridas, nem Senna, Schumacher, Alonso, Vettel ou Hamilton.