Discos eternos – Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets (1972)
RIO DE JANEIRO – Na história da música, existiram e ainda existem bandas em que o desgaste natural da estrada, a convivência por muitos anos e inclusive a guerra criativa nas composições e no palco acaba por colocar um ponto final em parcerias, amizades e – claro – nas próprias bandas.
Foi exatamente o que aconteceu aos Mutantes – com um trabalho que trouxe sérias consequências para o futuro do grupo, ainda hoje cultuado pelos roqueiros menos ortodoxos e por aqueles da gringa que descobriram um som ‘diferente’ vindo dos trópicos.
Por um longo tempo, o grupo dos irmãos Baptista e de Rita Lee foi muito cultuado lá fora e não à toa, quando houve um dos shows de ‘reunião’ – escrevo entre aspas porque da formação original não faziam parte Rita e Liminha – uma das apresentações gravada ao vivo em CD e DVD foi em Londres, no Barbican Hall.
Os Mutantes sempre foram um caldeirão fervilhante de novidades e ideias. Mas o rock do início dos anos 1970 caminhava para dois lados: um deles, o hard-rock de Deep Purple, do Led Zeppelin e do Black Sabbath. Do outro, a vertente do progressivo, com longas suítes e temas mais, digamos assim, viajandões. De ácido, preferencialmente.
Sunshines e LSD não faltavam no cardápio lisérgico da turma que na época tinha várias casas e ensaiava exaustivamente na Serra da Cantareira. Mas por sugestão de Rita Lee (salvo engano), o título daquele que é oficialmente o trabalho do grupo lançado em 1972 homenageava Tim Maia, que chamava de “baurete” o cigarro de maconha.
Com capa mais uma vez concebida pelo artista Alain Voss, Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets já é um trabalho fortemente influenciado pelos sons de grupos como Yes, King Crimson, Focus e outros. Talvez seja o disco menos escrachado da discografia que nos trouxera os dois (ótimos) primeiros álbuns e o não menos sensacional Jardim Elétrico, de 1971.
Pode causar um certo estranhamento em quem conheceu Rita, Sérgio, Arnaldo, Liminha e Dinho dos tempos de “Caminhante Noturno”, “Dom Quixote” e “Qualquer Bobagem”. E há que se registrar que já não havia mais Rogério Duprat trabalhando com eles em orquestração ou arranjo algum. Mas a irreverência dos velhos tempos aparece pelo menos em “Rua Augusta”, a antiga canção de Hervé Cordovil que o grupo revisitou de forma brilhante.
O álbum abre com “Posso Perder Minha Mulher, Minha Mãe, Desde Que Eu Tenha o Rock and Roll”, uma espécie de declaração de princípios do que representava o trabalho, que resvalava em coisas bem irregulares como a lamuriosa “Vida de Cachorro” (cantada e composta por Rita Lee) e entremeado pelas bobíssimas vinhetas “Todo Mundo Pastou I” e “Todo Mundo Pastou II”, de Bororó.
Mas há coisas boas, ótimas aliás. “Dune Buggy” é um hard-rock sensacional que faz troça do LSD, misturando as letras do ácido lisérgico com o STP, um famoso aditivo para combustíveis usado largamente em motores mais envenenados. Já é uma das faixas que pouco usa os vocais de Rita Lee, assim como a sacana “Cantor de Mambo”, composta por Rita (que só é escutada nos versos iniciais e no coro), Arnaldo e Élcio Decário para zoar Sérgio Mendes, tido pela letra da canção como ‘americanizado’.
No final da faixa, Sérgio decalca uma guitarra à la Carlos Santana e o esporro sonoro tenta encobrir – mas não consegue – um sonoro ‘carajo’ falado por Arnaldo em espanhol.
“Beijo Exagerado” é uma referência velada à uma casa portoalegrense da época de meninas de vida fácil (ou não, dependendo do contexto), chamada Casa da Mônica. A faixa-título é uma viagem instrumental longuíssima entremeada por solos de órgão e teclado de Arnaldo Baptista com a letra de “Tempo no Tempo”, que é a versão escrita por César Baptista, pai dos manos Sérgio e Arnaldo, para “Once Was A Time I Thought”, dos Mamas & Papas.
E não podia faltar – é claro – um problema com a censura, que não perdoava quase ninguém naqueles tempos de regime militar e que atrasaria, óbvio, o lançamento do álbum em pelo menos dois meses.
“É plasticamente feio, meus filhos”, teria dito a temida censora Solange Hernandes para Rita Lee e seus companheiros, ao vetar a música “Cabeludo Patriota”, ao se referir ao verso ‘A minha caspa é de purpurina… minha barba é azul-anil’.
Para a faixa ser aprovada e gravada, os Mutantes prometeram suprimir a frase ‘O meu cabelo é verde-e-amarelo’ e reenviaram a música sem o referido trecho e com o nome trocado para “A Hora e a Vez do Cabelo Nascer”. Passou.
Na gravação, o grupo cantou a letra original e na mixagem final foi sobreposto um som de tosse, como se o disco soasse arranhado. Um claro recado ao ouvinte de que a música fora censurada.
Aliás, sobre “A Hora e a Vez do Cabelo Nascer”, há uma curiosidade: circulou por longo tempo na época dos Mp3 – e eu tenho essa gravação que copiei para CD – uma versão menos ‘suja’ da música. Originalmente, ela é bem mais pesada e inclusive Liminha dá uma aula de baixo na faixa.
E a música que mais resistiu ao tempo e se tornou talvez o grande clássico mutante, cantada no álbum por Sérgio Dias é “Balada do Louco”, composta ao piano por Arnaldo com letra de Rita Lee, que anos depois ganharia uma belíssima versão de Ney Matogrosso.
Após o lançamento, os Mutantes ainda participariam do VII FIC, o Festival Internacional da Canção, transmitido pela Rede Globo e então produzido por Solano Ribeiro. Inscreveram “Mande Um Abraço Pra Velha”, música inédita que começava com uma suíte de rock progressivo à Yes e Mahavishnu Orchestra e acabava em samba – com direito a um verso que sacaneava a própria estrutura de festival e deixou Solano perplexo no ensaio – já que o grupo, evocando os velhos tempos, enviou ao comitê de seleção uma outra letra que não continha o trecho abaixo.
Imagine um festival
Sem caretas e no sol
Imagine um festival
Com a sua mãe e o Juvenal
Rita gostava da canção, que foi à final mas não terminou classificada. Mas Arnaldo, principalmente, a detestava. Os dois, que casaram no final de 1971, já estavam às turras maritalmente e em especial na questão criativa. Como ele queria mergulhar de cabeça no rock progressivo, a visão de Rita de pernas de fora, com sua voz de pouco alcance (ela sempre admitiu isso) e tocando pandeiro furado (palavras da própria, também) não cabia mais na banda.
Após gravarem Hoje é o Primeiro Dia do Resto de Sua Vida, que a priori foi um disco dos Mutantes mas a Philips exigiu que acabasse lançado como um álbum-solo de Rita Lee, vem a controvérsia: Rita sai (ou é saída) do grupo – ela chegaria a montar com Lúcia Turnbull as Cilibrinas do Éden e depois, com a ajuda de Antônio Bivar, viria com o Tutti-Frutti para trabalhos e shows solo – e o resto, vocês sabem, é história. Este blog já resenhou o clássico Fruto Proibido, um dos melhores discos brasileiros de rock em todos os tempos.
Certo é que os Mutantes não seriam mais os mesmos: em 1973, gravam O A e O Z, mas o trabalho é rejeitado por André Midani, presidente da Philips, por ser ‘pouco comercial’ (e não era mesmo). Após sete anos, Arnaldo e Dinho deixam a banda, que seguiria com Sérgio Dias como único integrante da formação original até 1978, quando os Mutantes conheceram seu fim.
Ficha Técnica de Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets
Selo: Polydor/Universal Music
Gravado e lançado em 1972
Produzido por Arnaldo Baptista
Duração do álbum: 45’45”
Músicas:
1. Posso Perder Minha Mulher, Minha Mãe, Desde Que Eu Tenha O Rock and Roll (Arnaldo Baptista/Rita Lee/Liminha)
2. Vida de Cachorro (Arnaldo Baptista/Rita Lee/Sérgio Dias)
3. Dune Buggy (Arnaldo Baptista/Rita Lee/Sérgio Dias)
4. Cantor de Mambo (Arnaldo Baptista/Rita Lee/Élcio Decário)
5. Beijo Exagerado (Arnaldo Baptista/Rita Lee/Sérgio Dias)
6. Todo Mundo Pastou (Ismar S. Andrade “Bororó”)
7. Balada do Louco (Arnaldo Baptista/Rita Lee)
8. A Hora e a Vez do Cabelo Nascer [Cabeludo Patriota] (Mutantes/Liminha)
9. Rua Augusta (Hervé Cordovil)
10. Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets (Mutantes/Dinho Leme/Liminha)
11. Todo Mundo Pastou II (Ismar S. Andrade “Bororó”)
Tenho ele em vinil, só que uma edição de 1983, editado pelo desativado selo Polyfar (Phonogram/Polygram). Naquela epoca (cultura hyppie em alta); os “dinossauros do rock progressivo” ditavam regras. o Heavy Metal andava de mãos dadas com o Prog-Rock. O Punk Rock veio depois… . Resumo da ópera: “Quando os gigantes caminhavam sobre a terra”. – marcio “osbourne” silva de almieda – joinville/sc