Festival do Álcool, 40 anos

Festival do Alcool 79

RIO DE JANEIRO – No próximo dia 7 de setembro, completam-se 40 anos de um acontecimento que reescreveu a história do automobilismo brasileiro. E para poder explicar como isso aconteceu, vamos viajar um pouco mais no tempo.

O ano é 1973. A OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) causou o “choque do petróleo mundial”. Era uma retaliação à guerra do Yom Kippur, conflito de uma coalizão de estados árabes liderados por Síria e Egito contra Israel.

O conflito durou 20 dias. Depois dele, o Oriente Médio nunca mais foi o mesmo. E nem o preço dos barris de petróleo, que atingiu um aumento superior a 550%.

Isso afetou o automobilismo em vários níveis. As provas do World SportsCar Championship, por exemplo, passaram a ter sua duração reduzida. A Fórmula 1 sobreviveu porque a FIA argumentou que o combustível usado num fim de semana de corridas não era nem um décimo do que se consumia no planeta inteiro.

E no Brasil a crise do petróleo resvalou de formas que, mesmo com o advento do Proálcool, por decreto assinado em novembro de 1975, o Ministério da Educação (não havia Ministério do Esporte), que controlava as confederações desportivas – incluindo a CBA, então presidida por Charles Naccache, determinou que em 1976 não haveria mais nenhuma corrida no país.

O ministro Ney Braga argumentava, junto com a Agência Nacional de Petróleo (ANP) que “gastar  em corridas era um mau exemplo” – muito embora houvesse a abertura de diálogo a casos excepcionais, desde que autorizados pelo Conselho Nacional de Desportos (CND) – um deles era o GP do Brasil de Fórmula 1, que não estava ameaçado.

E foi vendida a história de que as 12 Horas de Goiânia, então válidas pelo Campeonato Brasileiro de Divisão 1, seriam a última corrida da história. Ganharam Affonso Giaffone e Edgard Mello Filho, com um Chevrolet Opala.

Charles Naccache e a CBA questionaram o quanto puderam a medida. Argumentava a entidade e seu presidente que todas as provas do automobilismo nacional da época consumiam o equivalente a 240 mil litros de combustível – eram ínfimos 0,021% do total do país. As montadoras que investiam pesado – Ford e Volkswagen bancavam categorias próprias – protestaram.

Em 4 de agosto, uma declaração do militar Jerônimo Bastos, do CND, foi decisiva para que o governo revogasse a decisão. O Ministro Ney Braga autorizou o retorno das competições duas semanas depois, com restrições que incluíram menos treinos, corridas mais curtas, o fim de alguns campeonatos regionais e uma economia de 53% de consumo de combustível.

Isto posto, alguns insumos passaram a ser de obrigatoriedade nacional, como pneus – foram proibidas as importações para categorias como a Divisão 3 e a Fórmula Super Vê, gerando uma diferença de performance em relação aos carros de 1976.

O automobilismo nacional voltou a conviver normalmente com seus carros movidos a gasolina enquanto o Proálcool corria a todo vapor e as montadoras já se preparavam para lançar seus primeiros modelos com o novo combustível. Até que em 1979 estourou o segundo choque do petróleo.

A reboque da queda do Xá Reza Pahlevi, que deu lugar ao Aiatolá Khomeini, a revolução do Irã – somada à invasão dos EUA ao Kuwait, fez novamente disparar o preço dos barris de petróleo. Já em maio, os primeiros postos passaram a vender álcool hidratado  – e esta passou a ser considerada uma opção-chave para o retorno das provas automobilísticas no país, novamente colocadas em xeque pela ditadura militar.

Bruno Brunetti, da parte técnica da CBA, convenceu o general Oziel de Almeida, da Petrobrás, quanto à viabilização do álcool para competições. Some-se a isso o comprometimento das montadoras em fabricar mais veículos com motores convertidos ao novo combustível – projeção de 400 mil veículos em 1982.

No mês de julho, Edson Yoshikuma, com um VW Passat da equipe Marshall Lester venceu a última prova regional disputada a gasolina – foi a 6ª etapa do Torneio Rio-São Paulo  de Divisão 3 em Interlagos. A partir daí, as corridas seriam proibidas até que todos estivessem prontos para o novo desafio – aceito em tempo recorde.

A imagem que ilustra este post, com um árabe estilizado e a frase “Dia 7 de setembro eles vão ouvir outro grito” foi o pôster promocional do Festival do Álcool e também foi usada nas credenciais de box naquele fim de semana histórico – a data não foi escolhida por acaso: é o Dia da Independência do Brasil – e a CBA foi feliz em sua promoção.

O Festival do Álcool foi marcado para o hoje extinto e saudoso Autódromo de Jacarepaguá. O público foi estrondoso: 54 mil pessoas, recorde absoluto em provas nacionais no Rio de Janeiro, acorreram à pista para acompanhar uma batelada de corridas de todas as categorias.

Foram 196 pilotos presentes, divididos em Fórmula VW 1600, Fórmula VW 1300, Fórmula Ford, Divisão 3, Turismo Fiat, Turismo Passat, Stock Car e até uma categoria feminina chamada de “Panteras”. Hoje dirão, com razão, que havia um enorme cunho machista nisto.

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Única que correu sem marcar pontos, a Stock Car deu um belo espetáculo em Jacarepaguá ao maior público presente a competições nacionais na história da pista

A única categoria que fez uma bateria foi a Divisão 3. Foi também a única a correr à noite e a mais numerosa – 27 carros largaram. À exceção da Stock, cuja prova foi extracampeonato (as “Panteras” igualmente correram sem contar pontos), todas valeram pelo Campeonato Brasileiro.

Arthur Bragantini foi o vencedor da prova da Fórmula VW 1600 com seu Polar da equipe Gledson, derrotando o então bicampeão Alfredo Guaraná Menezes e Antônio Castro Prado, que vinha em franca ascensão na categoria. Na soma dos tempos, o top 5 foi Bragantini, Pradinho, Marcos Troncon, o carioca Maurício Chulan (que seria o campeão de 1979) e Chico Feoli.

Guaraná também queria disputar a Fórmula Ford mas, sem carro, viu o favorito Bragantini (que seria bicampeão) ter problemas mecânicos e Rui Guimarães foi o vitorioso com um Bino, seguido por Aloysio Andrade Filho, Luiz Alberto Castro, Wagner Rossi e Maurizio Sandro Sala.

Na Fórmula VW 1300, Élcio Pellegrini ganhou a primeira bateria e chegou em 20º na outra. Jefferson Elias, com um Polar, faturou a segunda bateria disputada em oito voltas e levou a corrida na soma dos tempos – Dárcio dos Santos foi o 2º colocado, seguido por Luiz Schaffer, Luís Scarpin e pelo carioca Paulo Renha.

Nas categorias de Turismo, a Stock – mesmo sendo extracampeonato – foi um show à parte, com disputas acirradíssimas pela vitória na soma dos tempos. Deu Paulão Gomes por muito pouco sobre Affonso Giaffone. Raul Boesel, que ganhou a segunda bateria, foi o terceiro na soma dos tempos, com Ingo Hoffmann em quarto e Guaraná Menezes em quinto lugar.

Toninho da Matta, mestre dos Passat na época, treinou na estrada já que em Minas Gerais não havia autódromo. Chegou com o carro ‘redondinho’ e fez a pole para a prova que foi disputada em única bateria de 10 voltas. Mas não venceu: Egídio Micci, o “Chichola”, derrotou Toninho e também Cézar Pegoraro, Paulo Júdice e José Junqueira, que fecharam o top 5.

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Duas centenas de carros, 196 pilotos na pista e uma multidão de mais de 50 mil pessoas nas arquibancadas. Nunca Jacarepaguá teria público tão expressivo em corridas nacionais. Aqui, Walter Soldan vem para o contorno da Curva Sul com seu Fiat 147 (Foto: Blog do Sanco)

Os Fiat 147 fizeram duas provas animadíssimas e o “grandão” Walter Soldan brilhou no circuito carioca, vencendo a prova após duas baterias e derrotando o prata da casa Murilo Pilotto. Hélio “Horácio” Matheus foi o 3º, seguido por Janjão Freire e Renato Connill.

Com os faróis já iluminando a pista carioca, Arturo Fernandes faturou a prova da Divisão 3, que inaugurou o Campeonato Brasileiro daquele ano. Com seu Fusca, ele derrotou Luiz Lara Campos, Amadeo Campos, Jaime Figueiredo (com um Passat) e Amadeu Rodrigues. Na prova das mulheres, ganhou Maria Cecília Bere, seguida por Heloísa Fontes e Dulce Doege.

Apesar da situação caótica do automobilismo nacional da época, o Rio Motor Racing Club fez um trabalho espetacular. Sob a batuta de Amadeu Girão, a programação foi TODA cumprida à risca. Os horários – algo raro – foram respeitados e a estrutura para atender os 200 carros presentes e 196 pilotos contemplava duas ambulâncias, cinco carros de serviço e uma dezena de guinchos. Felizmente nada de mais grave aconteceu.

A CBA e Charles Naccache comprovaram a viabilidade do álcool como combustível. E Brasília, claro, adorou. O saldo foi positivo e o automobilismo brasileiro mostrou que o combustível era viável. E isso garantiu a sobrevivência do esporte no país.

Muito pouco se fala da administração Charles Naccache. Mas foi em seu período à frente da CBA que o automobilismo nacional foi salvo. Quarenta anos depois do momento histórico, é preciso pagar tributo ao presidente que esteve à frente da entidade entre 1975 e 1980.

Comentários

  • Eu estava lá. Tinha uma credencial para os boxes e passei a primeira parte do dia andando entre carros e pilotos. Autódromo lotado, do paddock as arquibancadas, para competir e assistir a UM DIA INTEIRO de corridas !!!
    Na época eu não tive a real noção de quão espetacular (no senso de ser um Mega Evento) foi o programa.

    E pensar que hoje esse autódromo, palco de um dos mais importantes momentos do nosso automobilismo, nem existe mais. Graças a ganancia, aos interesses pessoais e a arrogância de um grupo de políticos e dirigentes corruptos,
    Puxa, seu eu acreditasse nas coisas lá do céu, eu desejaria que a alma do Moretti e do Nonato assombrassem a eles todos, pelo resto da vida

    Uma curiosidade: na parte da tarde não voltei para os boxes, preferi ir para as arquibancadas (muito cheias), de onde poderia assistir melhor as corridas restantes.
    De repente, ouço o meu nome completo, os meus 4 nomes e sobrenomes, ser chamado pelos autofalantes, na voz do locutor oficial !!!! Pensei: “Ué, eu não sou tão importante assim….que diabo é esse ?” Daí o locutor prosseguiu: “Antonio, voce é muito distraído !!! Voce perdeu sua carteira de identidade aqui na area dos boxes. Passe na Torre e Cronometragem para pega-la”….kkkkkkkkk.
    Esse fato, e o cheiro forte do álcool queimado espalhado no ar, são as lembranças mais fortes que eu guardo daquele dia. Das provas em si, me lembro muito pouco.

    Antonio

      • Mas quando pessoas comentam sobre as antigas corridas ou vejo fotos dos anos 70 ,80, o que sempre incomoda muito é o fato dos autodromos estavam sempre lotados e hoje em dia só mesmo F1 leva publico pra pista.
        O que incomoda mais é que as categorias nem se incomodam com isso, o novo automobilismo é um mundico pequeno que só mesmo aquele oba-oba entre os participantes e parceiros lhes é suficiente.Triste.

    • Eu também estava lá, Antonio. Pela primeira vez levei minha mulher a uma corrida e ela achou fantástico o espetáculo, pela variedade de categorias. Fiquei ali pela entrada da curva sul e me lembro bem de 2 detalhes: o pessoal da Fórmula VW1300 entrando em bloco de seis, sete carros na curva (!), e de um certo novato chamado Boesel com seu Opala branco e patrocínio do Globo jogando o carro prá valer, derrapando nas quatro.
      Que dia!

  • Tinha 14 anos, foi o melhor “desfile”de 7 de setembro que já vi.
    Da turma que acabou com Jacarepaguá, só falta Eduardo Paes, o resto, foi ou está preso: Lula, Cabral, Nuzman, empreiteiros, etc…

  • Belo texto!

    Essa história precisava mesmo ser contada.

    Sou fã de automobilismo, mas a parte importante dessa história diz respeito a inserir o Brasil no planeta, como senhor da tecnologia do álcool como combustível.

    A partir dos choques do petróleo, o automobilismo foi o campo de provas avançado, para que a indústria automobilística brasileira pudesse criar e explorar um combustível “não – extinguível” (como é o petróleo) e cuja produção poderia ser feita no Brasil.

    Hoje temos petróleo em diversos campos, assim como temos a capacidade de produzir álcool. Mas vamos além das commodities: temos a tecnologia ‘flex’, como disse o Gustavo.

    Isso é o que conta: ser um país tecnologicamente relevante, coisa que o álcool combustível nos trouxe.

    Claro, sou fã de corridas, mas acho que a irrelevância do automobilismo de hoje está ligada ao fato de que nós, os fãs, adoramos os carros e as corridas, mas esquecemos de inserir nosso esporte no contexto da guerra tecnológica entre países e corporações. Foi isso que criou o automobilismo. Sò isso mantém vivo o automobilismo.

    Gol, Rodrigo! Bela pesquisa, belo resgate da história.

  • Parabéns mais uma vez Mattar por esse importante resgate histórico. Retificando na Formula VW 1300 desse Festival Jefferson Elias, com um Minelli, levou a corrida na soma dos tempos.