Há cinquenta anos: de cento e uma, a primeira de todas

A bordo do carro #24 do Gold Leaf Team Lotus, naquela que era somente sua quarta corrida na Fórmula 1, Emerson Fittipaldi abria, há meio século, uma bonita página de conquistas dos brasileiros no automobilismo. Pena que tenhamos parado no tempo e os triunfos já completaram onze anos de jejum, ou 4.093 dias – e subindo

RIO DE JANEIRO – Faz tempo que o público brasileiro e o fã de automobilismo no país não celebra uma vitória dos nossos representantes na Fórmula 1.

A última foi a 101ª da história, com Rubens Barrichello a bordo de sua Brawn GP com motor Mercedes-Benz, há onze anos, no GP da Itália.

Isso foi no dia 13 de setembro de 2009. Na ponta do lápis, dá 4.039 dias. E subindo. Podem esquecer: tão cedo o brilho dos nossos se repetirá na categoria máxima.

E esse brilho começou ´ha exatamente meio século. Faz 50 anos neste 4 de outubro, um domingo como em 1970, que Emerson Fittipaldi subiu ao pódio como vencedor de um Grande Prêmio de Fórmula 1.

A Lotus corria enlutada. Praticamente um mês antes, em 5 de setembro, véspera do GP da Itália disputado em Monza, Jochen Rindt sofreu um acidente até hoje tão inexplicável quanto violento, em que o austríaco, então líder absoluto do campeonato com cinco vitórias, bateu na curva Parabólica.

As circunstâncias são até hoje estranhas. Muitos atribuem um excesso de carga nos freios dianteiros ao Lotus 72 de Jochen. Outros ao fato de que o piloto só teria morrido porque corria sem os fechos de baixo do cinto de segurança e que o corpo de Rindt teria deslizado pelo banco e o pescoço do piloto quebrado no impacto.

Jamais saberemos.

Naquela oportunidade, Colin Chapman, que já passara pelo dissabor de ver Jim Clark envolvido na morte trágica de Wolfgang Von Trips durante o mesmo GP da Itália nove anos antes, em 1961, retirou seus carros da prova e também a equipe não-oficial de Rob Walker também não correu. E a equipe não disputaria o GP do Canadá, 11ª e antepenúltima etapa, marcada para o circuito de Mont-Tremblant em St. Jovite, próximo à Québec.

O` único Lotus visto no Canadá foi justamente o de Rob Walker, alinhado para Graham Hill. A luz de alerta foi acesa em Norfolk quando o resultado da corrida foi conhecido na Inglaterra, país-sede do Gold Leaf Team Lotus: vitória de Jacky Ickx, com Ferrari – em dobradinha com Clay Regazzoni. Chris Amon, então na March, foi o 3º colocado.

Restando a partir daí os GPs dos EUA em Watkins Glen e do México, no Autódromo Magdalena Mixhuca, Rindt ainda liderava post-mortem a classificação com 45 pontos. Porém, o triunfo de Ickx lhe devolvia esperanças e o belga, com 28, reunía chances. Clay Regazzoni, com 27, era carta fora do baralho por não conseguir chegar ao mesmo número de triunfos que Rindt. Mas poderia ser útil para a Ferrari também destronar a Lotus e levar para Maranello o título mundial de Construtores.

Risco máximo: Fittipaldi virou primeiro piloto da Lotus aos 23 anos, com menos de dois de carreira internacional. E Colin Chapman apostou suas fichas noutro piloto tão inexperiente quanto o brasileiro – o sueco Reine Wisell, estreante naquela corrida – para guiar o segundo carro

Colin Chapman tinha então um dilema para resolver e rapidamente se decidiu por entregar os dois Lotus 72 de sua equipe a dois pilotos sem muita experiência na Fórmula 1: o brasileiro Emerson Fittipaldi – que tinha somente três provas pela equipe no currículo (e um ano e quatro meses apenas de carreira no exterior antes de sua estreia em Brands Hatch pela Lotus, com passagens pela Fórmula Ford e Fórmula 3 inglesa em 1969 e pela Fórmula 2 europeia naquele ano de 1970) e um estreante, o sueco Reine Wisell, que cofiara bigodes contra um atrevido Ronnie Peterson nos tempos de Fórmula 3.

O projetista e dono da equipe pesou os p´rós e os contras da decisão e, sem John Miles – que decidira por se aposentar das pistas aos 27 anos apenas – após a morte trágica de Rindt, acabou por arriscar tudo em busca de salvaguardar o título de Rindt e também dar à Lotus seu quarto troféu de melhor equipe, prêmio que começou a ser ofertado em 1958.

Os carros foram despachados para os EUA e na pista de Watkins Glen, que na época tinha uma variante de 3,701 km que a categoria usaria em 1970 justamente pela última vez, os dois novatos foram bem: Emerson Fittipaldi conseguiu um ótimo 3º tempo para o grid, com 1’03″67. A seu lado, na primeira fila, estaria exatamente Jacky Ickx, o rival a ser batido, na pole position e, em segundo, com o novo Tyrrell 001, o campeão do ano anterior, o “Escocês Voador” Jackie Stewart.

Reine Wisell classificou-se com o nono tempo – 1’04″79. Havia 27 pilotos para 24 vagas e, sendo assim, não largaram Peter Westbury (BRM), Pete Lovely (Lotus) e Andrea de Adamich (McLaren Alfa Romeo).

O fim de semana não foi um mar de rosas para Fittipaldi. O frio novaiorquino naquela época do ano lhe custaria um resfriado e, mesmo sem estar no seu melhor e sob efeito de remédios, o piloto da Lotus tinha que ir à luta e fazer sua parte para evitar que Rindt e a escuderia perdessem o ano de 1970 para Ickx e Ferrari.

A largada não foi boa: Emerson baixou de terceiro à partida do diretor de prova Tex Hopkins para o 8º lugar, atrás de Jackie Stewart, Pedro Rodríguez, Jacky Ickx, Clay Regazzoni, Chris Amon, John Surtees e Jackie Oliver. Reine Wisell era o décimo colocado.

A corrida teria 108 voltas, um total surreal para os dias de hoje, mas não para a Fórmula 1 daqueles tempos, em que ainda não havia a limitação de 300 km para os GPs e nem de duas horas de tempo máximo. Seriam percorridos nada menos que 399,708 km naquele domingo e seria preciso paciência. Muita paciência…

Na quarta volta, já com Stewart abrindo boa vantagem sobre Rodríguez, Emerson avançou para sétimo, superando John Surtees. À média de um segundo por volta num circuito onde nos treinos a pole girou em torno de 1’03”, o escocês da Tyrrell já tinha 10 segundos de frente para o mexicano da BRM – em apenas dez voltas.

Fittipaldi era sétimo a 22 segundos do líder e Wisell, décimo a pouco mais de meio minuto de Stewart.

Após uma intensa pressão em luta contra a BRM de Rodríguez, Ickx – que necessitava vencer o GP dos EUA – foi `à luta e na 15ª volta efetivou a ultrapassagem sobre o adversário. Mas sua desvantagem para Stewart era considerável. No trigésimo giro, a nova Tyrrell disparava meio minuto de frente para o belga da Ferrari, com Regazzoni já em terceiro.

Stewart corre praticamente sozinho e na altura da 40ª volta o líder abre uma volta inteira sobre o March de Chris Amon e a Lotus de Fittipaldi. E logo depois, com um problema elétrico, Regazzoni entra nos boxes. A parada demora mais de 10 minutos e o ítalo-suíço retorna à pista em 15º entre dezenove pilotos.

Com 50 voltas percorridas, somente Stewart, Ickx e Rodríguez estão na mesma volta. Emerson é quarto, mas um giro atrás do escocês. Wisell é quinto e Derek Bell, num segundo Surtees, é o 6º colocado.

Logo após, alívio nos boxes da Lotus: uma falha numa mangueira de combustível leva Jacky Ickx aos boxes. O conserto demora duas voltas e o belga retorna à disputa em 12º lugar. O sonho do título se torna cada vez mais impossível.

A diferença de Stewart para Rodríguez chega a incríveis 55 segundos quando o carro azul da Tyrrell completa sessenta das 108 voltas previstas. É um massacre de Jackie sobre o resto da turma, mostrando o porquê de ter sido o campeão mundial de 1969.

Faltando pouco mais de 30 voltas para a quadriculada, o líder diminui um pouco seu ímpeto. Pode ter se lembrado que projetos novos e carros idem têm falhas: ele passara por percalços na estreia do carro na Gold Cup – prova extracampeonato em Oulton Park – e também na primeira corrida oficial, no Canadá. Stewart sabia que se andasse “pianinho” em Glen, as coisas seriam diferentes.

Só que não: o motor começou de súbito a vazar grande quantidade de ´óleo na pista, ao mesmo tempo em que Ickx, dando tudo em sua Ferrari, já alcançava o “Urso” Denny Hulme na luta pelo 7º lugar. Agonizante, a Tyrrell de Stewart começou a perder performance, Rodríguez descontou a diferença e, por fim, o motor do carro líder expirou na 83ª passagem. 

Não se enganem: foi uma tremenda demonstração de força e do que Jackie faria em 1971.

Subitamente, Pedro Rodríguez viu-se com sua BRM P153 no comando da disputa e com Fittipaldi a 19 segundos do mexicano, já com Reine Wisell em terceiro e último na mesma volta, posto que Chris Amon, vítima do seu proverbial azar, parara nos boxes para trocar um pneu vazio em seu March 701.

Nos boxes da Yardley-BRM, a tensão reinava apesar da liderança relativamente sossegada de Rodríguez diante de Fittipaldi. Tim Parnell fazia contas. A preocupação era se havia combustível suficiente para o motor V12 do carro britânico chegar à frente e assim conquistar a vitória – que seria a terceira do mexicano na Fórmula 1.

Nessa altura, já na zona de pontuação, Ickx fazia o impossível para salvar o resultado que desse. Passou o Surtees de Bell e pegou o quinto posto.

A preocupação nos boxes da BRM aumentava. E a certeza de que Rodríguez enfrentaria, como na etapa anterior, o mesmo problema de o combustível não ser suficiente para terminar a disputa. Quando a diferença entre o líder e Fittipaldi caiu para 15 segundos, o mostrador de gasolina mostrava um dado alarmante: o risco de pane seca no carro de Pedro era iminente.

Restando sete voltas, Rodríguez pára nos boxes. Os mecânicos tentam ser rápidos, mas não conseguem devolvê-lo no tempo necessário para conservar a ponta. O piloto sai 50 segundos depois e já em 2º lugar.

Ickx, furioso, faz a melhor volta com 1’02″74, tempo melhor que o da pole position. Alcança, passa Amon e ganha o quarto posto. Tarde demais, contudo.

Na frente, Emerson dosa o ritmo. Com poucas voltas restando, o brasileiro sabe que é só levar o Lotus 72 com o dorsal #24 para a quadriculada. E após 1h57min32seg97 guiando por mais de uma centena de giros pela pista de Watkins Glen, à média de 204,020 km/h, o brasileiro enfim vence, com 36″21 de diferença para um inconformado Pedro Rodríguez, vítima de um erro de cálculo de combustível em seu carro. Reine Wisell estreia logo com um pódio, chegando 45 segundos atrás. Ickx é quarto, com Amon em quinto e Bell em sexto.

Troféu em mãos no pódio: a vitória de Fittipaldi deu uma dupla alegria à Lotus, pela conquista póstuma de Jochen Rindt e pelo quarto título da equipe inglesa no Mundial de Construtores, assegurado por antecipação de uma etapa

No Parque Fechado, Fittipaldi é saudado por Colin Chapman que, entre lágrimas e sorrisos, confirma que a primeira vitória do brasileiro, então com 23 anos apenas, é suficiente para assegurar o título post-mortem a Jochen Rindt. Com os nove pontos somados por Emerson, a Lotus alcança 59 pontos (valia apenas o melhor resultado do Construtor, independentemente da equipe), treze a mais que a Ferrari.

Restando somente o GP do México semanas após, não havia mais nada que pudesse ser feito. A própria FIA, contestada, ratificaria o título a Rindt porque “vivo ou morto (palavras da entidade), o campeão será declarado desde que some mais pontos”. Incontestável: Rindt tinha 45 e Icxk, 31.

E assim foi: começava aí uma história de conquistas que teve seu marco há meio século e a tradição de triunfos e títulos do Brasil na Fórmula 1 parou no tempo – no que dizem ser um caminho sem volta.

A julgar por todos os acontecimentos da atualidade, não duvidem: ficaremos um bom tempo sem ter alguém que seja capaz de chegar aos feitos de Emerson, Pace, Piquet, Senna, Barichello e Massa. Cento e uma vitórias através de seis nomes.

E hoje? O que temos, afinal?

Comentários

  • Rodrigo,

    Perfeito, cirúrgico o teu relato !!!! E já era hora de alguém lembarr essa vitoria, ainda mais com um relato tão detalhado e fiel.
    Você não caiu na esparrela que todos caem: afirmar que foi Emerson quem DEU o titulo ao Rindt.
    De fato, Ickx chegando em quarto, perdeu sozinho a chance de lutar pelo titulo. Não vencesse Emerson, venceria Rodriguez, e Rindt seria campeão post mortem, do mesmo jeito. E não vencesse nenhum dos dois, mesmo assim Ickx teria chegado em segundo para Wisel, e Rindt seria campeão da mesma maneira.
    E, é verdade incontestável, tá difícil prever quando poderemos ter um piloto brasileiro vencendo na F1.

    PS _ amanhã, 06/10, dia de aniversario do Moco e aniversario de morte do Cevert.

  • Palavras tão bem escritas que dá pra imaginar a corrida passando pela cabeça enquanto lemos.
    Por mais relatos detalhados dessa época tão trágica do automobilismo, em número de acidentes, mas igualmente bela em termos de talento, rivalidade e consolidação de tecnologia!
    Passamos a vida inteira imaginando que realmente o Emerson “garantiu” o título póstumo do Rindt.
    E lamentamos mesmo que tão cedo não teremos um brasileiro no grid, quanto mais vencendo corridas. Talvez levemos tanto tempo quanto os franceses, de Panis a Gasly, ou mais. Que foram duas vitórias circunstanciais. Gasly é muito bom piloto, mas sabemos que não tem um carro vencedor.
    Da safra atual, Pietro Fittipaldi, Sérgio Sette Câmara e Felipe Drugovich, não temos muitas perspectivas. Sérgio talvez vá para a F-E, e faz bem, pois não conseguirá nada de bom na F-1 a curto prazo, Pietro tende a se tornar um novo Nelsinho ou Bruno, vai correr de tudo, e não se fixar em nada, e Felipe faz boa temporada, parece ser bom piloto, mas não enche os olhos de ninguém, ainda mais quando todos falam em Mick, Callum e Robert. Sua meta a curto prazo é se consolidar na F-2, talvez ir para uma das equipes grandes de lá, para, quem sabe, lutar pelo título em 2021. Aí com um título de F-2 ele tem chances de entrar na F-1 por uma boa porta.
    Esqueci do Guilherme Samaia de propósito mesmo. Nunca tinha ouvido falar do cara até ele aparecer na F-2, e ele, até o momento, é o Raghunattan de 2020. Toma um segundo do companheiro de equipe toda corrida e sempre termina entre os últimos, senão último. Tomara que haja alguma justificativa para esse desempenho pífio que não seja um problema técnico entre o banco e o volante, pois é a única que imagino no momento.