Discos eternos: Negro é lindo (1971)

RIO DE JANEIRO – Há meio século, Jorge Benjor era Jorge Ben e tinha 31 para 32 anos quando lançou seu oitavo álbum da carreira de quem, como ele, lançava na média um disco por ano – em 1964 ele quebrou essa média, gravando dois álbuns.

Nascido no subúrbio de Madureira em 1939 (o artista insiste em dizer que é seis anos mais novo, tendo nascido em 1945 – o que não é verdade), Jorge Duílio Lima Menezes tinha o sonho de ser atleta do Flamengo. Mas, cria do Rio Comprido – salgueirense de quatro costados – e integrante da Gang dos Cometas, conheceu Erasmo e Roberto Carlos, Tim Maia, Arlênio Lívio, China e tantos outros que fariam e fazem ainda parte da história da música brasileira.

Na “Turma do Divino”, deixou os sonhos de criança pra lá e começou a arriscar seus primeiros passos com um rock de Ronnie Self chamado “Bop-a-lena”, que o espigado mulato cantava “Babulina” – que seria dali para diante seu apelido.

O “Babulina” alçou voo na época do Beco das Garrafas onde, na fervilhante Copacabana dos anos 1960 e de um Rio de Janeiro que ainda tinha relevância cultural e nacional – a capital recém-saíra rumo a Brasília, com seu violão ele subia nos palquinhos do Bottle’s Bar e definia as bases do samba-rock em canções como “Mas, que nada” e “Por causa de você, menina”, num tempo em que Jorge falava voxê ao invés de você.

Transitando com facilidade entre a turma da Bossa Nova e da Jovem Guarda, Jorge gravou quatro ótimos álbuns entre 1963 e 1965, sua carreira decolou como um foguete mas, do nada, ele se sentiu ‘desprestigiado’ na Phonogram, pediu o boné e foi embora. Eletrificou seu som com os Fevers e num disco gravado pela minúscula Rozenblit, O Bidu – Silêncio no Brooklin, já resenhado aqui no blog – carimbou sua volta à gravadora holandesa cujo presidente era o franco-sírio André Midani.

Dentro da premissa de “total liberdade criativa” dada pela nova administração da Phonogram, Jorge encontrou novo fôlego na carreira e teve o amparo do Trio Mocotó, grupo altamente percussivo e talentoso formado por Nereu “Gargalo”, Fritz “Escovão” e Joãozinho Parahyba, sobrinho do político Severo Gomes e herdeiro da fábrica de cobertores e colchas Parahyba.

Com essa trinca infernal, Jorge incorporou além da guitarra elétrica um suingue altamente percussivo ao seu violão, que tocava rasqueando com os dedos das suas grandes mãos.

Foi o início de uma grande fase criativa do cantor-compositor, que desaguaria em trabalhos fundamentais da história da MPB, na qual se inclui o disco Negro é lindo, de 1971 e que lhe rendeu participações em festivais como o FIC – com a vaiad´íssima “Charles Anjo 45” na edição de 1969, “Por que é proibido pisar na grama”, em 1971 e a vitória de Maria Alcina como intérprete de sua “Fio Maravilha”, que levava o Maracanãzinho abaixo em 1972, na última edição do evento.

Com produção de Paulinho Tapajós e Marco Mazzola como técnico de gravação, Negro é lindo – a capa é um trabalho de arte final de Aldo Luiz, com a foto do artista toda reticulada – tem excelentes músicas da safra jorge-beniana. Começando com “Rita Jeep”, uma nada implícita declaração à Rita Lee – que tinha um jipe chamado Charles e que foi affair de Jorge por um curto período em 1971.

Rita Jeep
Sujeita você é um barato
Terrivelmente feminina
Com você eu faço um trato
Um trato de comunhão de bens
Um trato de comunhão de bens
O negócio é o seguinte
Você é minha e eu sou seu também
Pois que é fraco se arrebenta
Quem não poder sai da frente
Quem é forte que se aguenta
Mais quem ama se dá bem
Eu quero ela, eu quero ela, eu quero ela
Eu quero ela, eu quero ela, eu quero ela

Eu quero ela, eu quero ela, eu quero Rita

Conhecida do FIC de 1971, “Porque é proibido pisar na grama” é revestida de um belo arranjo de cordas – cortesia de Arthur Verocai, uma discreta percussão do Trio Mocotó e uma daquelas letras cheias de suingue e de mensagens meio sem sentido que quase sempre marcaram a carreira de Jorge Ben. Essas duas músicas antecedem a primeira grande guinada de Jorge rumo à diáspora negra: a espetacular “Cassius Marcelo Clay”, em parceria com Toquinho.

Cassius Marcelus Clay
herói do século vinte sucessor de Batman
Sucessor de Batman, Capitão América e Superman
Cassius Marcelus Clay, o primeiro
Tem a cadência
De uma escola de samba
E o 4-3-4 de um time de futebol
Salve Narciso Negro, salve Muhamad Ali, salve Fighty Brother,
Salve king Clay
O eterno campeão na realidade um ídolo mundial
Tem a postura da estátua da liberdade
E a altura do Empire State
Salve Cassius Marcelus Clay
Soul brother, soul boxer, soul man

Nos tempos dos velhos vinis, Jorge completou o lado A de Negro é lindo com a melíflua “Cigana” e com a suingadíssima “Zula”, com um caprichado arranjo de cordas, o violão marcando o ritmo e a percussão do Trio Mocotó comendo solta.

Virando o bolachão, o ouvinte abria os trabalhos do lado B se deliciando com a sensacional faixa-título. Jorge dá um show com voz colocadinha, um coral feminino belíssimo e mais um grande arranjo do maestro Arthur Verocai.

Negro é lindo
Negro é amor
Negro é amigo
Negro também é
Filho de Deus
Eu só quero que
Deus me ajude
A ver meu filho
Nascer e crescer
E ser um campeão
Sem prejudicar
Ninguém porque
Negro é lindo
Negro é amor
Negro é amigo
Negro também é
Filho de Deus
Negro também é
Filho Deus
Preto velho tem
Tanta canjira
Que todo o povo
De Angola
Que todo o povo
De Angola
Mandou preto velho
Chamar eu quero ver
Preto velho dizer
Eu quero ver preto
Velho cantar e dizer
Negro é lindo
Negro é amor
Negro é amigo
Negro também é
Filho de Deus
Negro também é
Filho de Deus

“Comanche” é outro show em todos os sentidos. De Jorge ao violão, do Trio Mocotó com apitos e a tamba de Joãozinho Parahyba e o naipe de metais e as espetaculares intervenções do clavinet – uma espécie de teclado usado numa das primeiras vezes na música brasileira. Arriscaria – se tivesse essa informação em mãos – que era Lincoln Olivetti, o mago, pilotando o instrumento na gravação.

E a letra bem-sacada traz mais uma das muitas pérolas do repertório de Jorge.

Minha estrela é do oriente
Eu sou Comanche, sou batuqueiro
Nasci e vivo contente
Comigo e com minha gente
Pois enquanto existir Deus no céu
Urubu não come folha
Enquanto existir Deus no céu
Eu vou cantando gente boa

Em outra parceria com Toquinho, de quem ficou amigo no tempo em que morou em São Paulo, Jorge compôs outro de seus muitos clássicos, que foi revestido de belezas em Negro é lindo: “Que maravilha” ganharia nesse álbum a sua versão definitiva.

Lá fora está chovendo
Mas assim mesmo eu vou correndo
Só prá ver o meu amor

Pois ela vem toda de branco
Toda molhada linda e despenteada, que maravilha
Que coisa linda que é o meu amor

Por entre bancários, jatomóveis, ruas e avenidas
Milhões de buzinas tocando minha harmonia sem cessar

Ela vem chegando de branco, meiga pura linda e muito tímida
Com a chuva molhando o seu corpo lindo
Que eu vou abraçar

E a gente no meio da rua do mundo
No meio da chuva, a girar, que maravilha
A girar, que maravilha
A girar

Jorge ainda tem fôlego – e o Trio Mocotó também – para balançar o ouvinte com “Maria Domingas”. A pouco conhecida “Palomaris” completa as dez faixas de um álbum que redefiniu o repertório do artista e seria ponta de lança para a fase experimental e esotérica que nos brindaria com pérolas e obras-primas feito A Tábua de Esmeraldas África Brasil – sem contar o pouco divulgado disco com Gilberto Gil, “gerado” numa jam session em que estavam ninguém mais, ninguém menos, que Eric Clapton e Cat Stevens.

Ficha técnica de Negro é lindo
Selo: Philips/Phonogram/Universal Music
Produção de Paulinho Tapajós
Gravado em 1971 – lançado em novembro de 1971
Tempo total: 34’35”

Músicas (*):

1. Rita Jeep
2. Porque é proibido pisar na grama
3. Cassius Marcelo Clay (Jorge Ben/Toquinho)
4. Cigana
5. Zula
6. Negro é lindo
7. Comanche
8. Que maravilha (Jorge Ben/Toquinho)
9. Maria Domingas
10. Palomaris

(*) À exceção das citadas, todas as músicas compostas por Jorge Ben.

Comentários

  • Mattar,

    Jorge Benjor é show!!!

    Junto com Raul Seixas e Tim Maia, são os 3 maiores cantores do Brasil, “Rei” a parte, claro…

  • Discaço irretocável. Tenho o vinil 180 gramas lançado pela Polysom em 2012, mas o CR-R gravado por uma amiga de faculdade no meio de nosso primeiro ano de Poli é muito mais valioso pra mim. Um daqueles discos que te transportam imediatamente para o período em que vc o conhece, no meu caso, 2002, o que, convenhamos, é um balsamo nos dias de hoje. O curioso é que por alguma razão, o CD-R começava direto em Pisar na Grama, o que sempre fez muito mais sentido pra mim.