‘Vilanova’: o meu herói

RIO DE JANEIRO – O dia 8 de maio é marcante na minha vida.

Porque eu tive, pouco antes de completar onze anos de idade, a real dimensão do que é perder algo ou alguém que você tanto admirava.

Gilles Joseph Henri Villeneuve, o “Piccolo Canadese”, a versão rediviva de Tazio Nuvolari, quase que um filho para o Comendador Enzo Ferrari, o eterno ‘Vilanova’ dos tifosi ferraristas, o “Acrobata”, o “Aviador”, partiu aos 32 anos há quatro décadas.

Se vocês soubessem o quanto eu chorei naquele dia, teriam noção do quanto aquilo pegou fundo num ‘catatau’ de menos de um metro e meio e ao meu pai, que bebia sua cerveja na mesa da cozinha e fumava seus Hollywood no fim de uma tarde de sábado, quando de súbito veio o plantão da Rádio Jornal do Brasil e a notícia infausta. Gilles Villeneuve estava morto.

Eu não queria acreditar. Meu pai também não. E nos entregamos a um pranto convulso como poucas vezes fizemos, juntos – e acredito que tenha sido uma das únicas vezes em que choramos, eu e ele. A outra foi quando eu pedi, emocionado, que ele não se separasse da minha mãe – o que não fez. E depois lhe dei razão e entendi a razão de ele ter se divorciado.

Enfim, voltemos a Gilles.

O campeão do povo.

Muitos dizem que jamais seria campeão mundial de Fórmula 1 – e pode ser que não fosse, mesmo. Que corria mais que os próprios carros. Desafiava os limites. De tempo, espaço, velocidade, física, todas as forças da natureza. Villeneuve era sobrenatural numa época onde ser arrojado era ser confundido em ser louco, inconsequente, insano. Talvez o canadense fosse tudo isso.

E fosse também garra, coração, paixão, verdade, intensidade.

Por isso conquistou o coração dos tifosi.

Pra mim, os italianos colocam a Ferrari acima de tudo e Gilles ao lado de Deus, lá no Céu. Em idolatria, ele é o maior dos maiores. Maior que Schumacher, Fangio e Lauda – e estamos falando de pilotos que, no Olimpo da categoria máxima do automobilismo mundial, foram gigantes com a Ferrari. Mas o que Villeneuve fez e conquistou de 1977 a 1982, em tão pouco tempo, em 66 de 67 corridas que disputou, dá a sensação de obra inacabada – como Clark e Senna – mas num nível inferior de genialidade, porém não de velocidade.

A habilidade em provas de Snowmobile, com a trapizonga que inventou e construiu – o Skiroulle – fez Gilles deixar todo o mundo de queixo caído quando num treino em Watkins Glen ele enfiou incríveis onze segundos no já campeão Jody Scheckter. Afora a façanha de conduzir um carro sem sustentação na dianteira – como esquecer o que Gilles fez no GP do Canadá de 1981?

Foi bom que Teddy Mayer tenha jogado fora um acordo para cinco etapas e um pré-contrato para 1978 na McLaren – após uma estreia impactante de Villeneuve em Silverstone, contratando Patrick Tambay para o lugar de Jochen Mass. Foi até bom que Daniele Audetto tenha demitido à revelia de Lauda o mecânico de confiança do austríaco, Ermanno Cuoghi. A recomendação de Chris Amon soou como música para os ouvidos de Enzo Ferrari, que via em Gilles a reencarnação de Tazio Nuvolari – e o canadense, quando andou com uma Ferrari em três rodas, ainda que num carro destruído no GP da Holanda de 1979, mostrou que o Comendador tinha uma certa dose de razão.

Villeneuve partiu após um chocante desastre ocorrido no circuito de Zolder, à véspera de um tristíssimo GP da Bélgica, deixando dúvidas atrozes sobre o que poderia fazer no futuro.

Será que o embate com Pironi destruiria o ambiente do time a ponto da Ferrari perder um título de Construtores que ela venceria? Eu, piamente, acredito que com o carro que tinham – a 126 C2 Turbo, o “Red Fittipaldi” de dr. Harvey Postlethwaite – qualquer um dos dois seria campeão naquele ano.

Mas o destino, caprichoso, rolou os dados e disse ‘não’. Primeiro para Villeneuve e depois, Pironi.

Assistindo há 40 anos e hoje, tanto tempo depois, ainda me choca a brutalidade, a fragilidade daquela Ferrari tão competitiva quanto perigosa. O corpo franzino de Gilles voando rumo à morte, feito um joguete de criança, é uma imagem que olha… difícil de engolir.

Villeneuve, você foi meu herói da infância. Só posso agradecer por ter lhe visto correr e ser o mais genuíno de todos os pilotos que assisti em 43 para 44 anos que acompanho automobilismo.

Salut, Gilles.

Gilles, eterno.

“O meu cheiro preferido é o da borracha queimada.”
(Gilles Villeneuve)

“Foi o piloto mais maluco que a Fórmula 1 já viu.”
(Niki Lauda)

“Saí da pista muitas vezes, mas me diverti muito.”
(Gilles Villeneuve)

“Ele era maluco, mas era um fenômeno. Conseguia fazer coisas que eram inalcançáveis para os demais.”
(Nelson Piquet)

“A minha estratégia? É andar o mais rápido possível o tempo todo.”
(Gilles Villeneuve)

“Penso que temos em Gilles um piloto maravilhoso.”
(Enzo Ferrari)

“Ele sempre arriscou mais do que qualquer outro piloto. Foi assim que construiu sua carreira.”
(Eddie Cheever Jr.)

“O homem é uma ameaça pública.”
(Ronnie Peterson)

“Enquanto eu queria me manter vivo, Gilles queria ser o mais rápido sempre – mesmo nos testes.”
(Jody Scheckter)

“O comendador, em pessoa, me telefonou e perguntou: ‘Você está pronto para guiar para nós?’ E eu respondi: ‘É claro que estou’”
(Gilles Villeneuve)

“Gilles foi o homem mais genuíno que conheci.”
(Jody Scheckter)

“Não se esqueçam que Nuvolari ganhou uma corrida só com três rodas.”
(Enzo Ferrari)

“Disse para mim mesmo: ‘Este é o Scheckter, este é o Andretti e eu consigo andar com eles.’ Fiquei muito satisfeito.”
(Gilles Villeneuve)

“Estava à espera de que uma Renault pudesse aparecer durante a largada, mas do nada veio uma Ferrari. Fui pego de surpresa e pensei: ‘De onde raios veio Villeneuve?’”
(Alan Jones)

“Ele é diferente de nós.”
(Jacques Laffite)

“Conheci apenas um piloto com a mesma capacidade que Villeneuve demonstrava ao controlar um carro: Jim Clark.”
(Chris Amon)

“Somente duas pessoas poderiam ter feito aquilo – Villeneuve e eu. Para mim, aquilo é a melhor memória de Gilles. Ele era uma ótima pessoa tanto fora, quanto dentro da pista. Gostava dele porque era natural. Ele era muito popular porque dizia exatamente o que estava na sua cabeça. Aquilo era muito importante para mim.”
(René Arnoux)

“Não penso em morrer. Mas aceito o fato de que a morte faz parte do jogo.”
(Gilles Villeneuve)

“Pensei que ele talvez fosse um pouco maluco.”
(Joanna Villeneuve)

Comentários

  • Que p. texto!
    Obrigado pela homenagem a esse piloto genial.
    Ele fez apenas 4 temporadas completas, deixou Schecketer ser campeão, em 1979, desenvolveu o motor tuebo da Ferrari, em 1980 e 1981. Em 1982, foi traído pela Ferrari e foi morto pela patética fragilidade do carro.
    O carro era tão pífio que quase matou Pironi, três meses depois, acabando com a carreira dele.
    Salut Gilles!

  • Linda homenagem, Rodrigo.
    Linda também a memória, tanto do que foram aqueles tempos para você, bem como das frases mais emblemáticas envolvendo Gilles.
    Off-post, mas também marcante, também completaram-se 4 décadas da partida de Paletti, um garoto de apenas 24 anos que apenas buscava a realização de um sonho.

  • Muito bonito e bacana esse texto!
    Também em casa meu pai era fã apaixonado dele.
    Qualquer um que gostasse de automobilismo na sua melhor essência tinha que admirar.

  • Mattar,

    Texto excelente!!!

    Os primeiros parágrafos me trouxeram lembranças de Maio (sempre Maio?!) de 1994, quando o “meu herói” dos tempos de adolescente, se foi…

  • “Salut, Gilles!”
    Acredito que também tenha visto por Imola ou Monza o “Forza, Gilles!”

    As imagens granuladas, desfocadas e com poucas cores do Gilles barbarizando em uma das 66 corridas (qq uma) e dos Tiffosi
    com suas bandeiras e cartazes com as mensagens acima, acompanhada de alguma música lúdico-dramática, sempre voltam à minha mente, ano após ano.

    E sempre revisito o espetacular, emocionante, dramático e chocante clipe editado por Ayrton S. (digno do mestre Antti Kalhola) com fundo musical de Robbie Williams.

    https://youtu.be/j2_kU0kC0Vc