A Mil por Hora
24 Horas de Le Mans

Loucura e mágica

RIO DE JANEIRO (Agora é que caiu a ficha…) – Por muitos anos, daqui em diante, todos nós vamos guardar essa edição das 24 Horas de Le Mans como uma das mais emblemáticas dos últimos anos e da história da prova, realizada desde 1923. Pelos mais variados motivos. Primeiro, pelas circunstâncias que nortearam a disputa […]

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Hat-trick: em mais uma vitória daquelas que será lembrada por muito tempo, a trinca Brendon Hartley/Earl Bamber/Timo Bernhard chega à vitória – décima-nona da Porsche – após o carro cair para 57º em virtude de um problema mecânico

RIO DE JANEIRO (Agora é que caiu a ficha…) – Por muitos anos, daqui em diante, todos nós vamos guardar essa edição das 24 Horas de Le Mans como uma das mais emblemáticas dos últimos anos e da história da prova, realizada desde 1923.

Pelos mais variados motivos.

Primeiro, pelas circunstâncias que nortearam a disputa ao longo de um dia inteiro. Do franco favoritismo da Toyota à decepção absoluta – mais uma – de ver dois de seus três carros a nocaute em menos de três voltas.

Segundo, da hipótese – que quase se tornou real – de um protótipo da classe LMP2 perpetrar a maior zebra da história desde o triunfo da Mazda e também a primeira vitória de um construtor independente desde Jean Rondeau em 1980.

E terceiro, que Le Mans mais uma vez escolheu a Porsche. Pela 19ª vez em sua história. E num desfecho que nem os mais otimistas ousariam prever.

Até porque o carro #2 da trinca Earl Bamber/Nick Tandy/Brendon Hartley teve que recolher para a garagem em razão de um grave problema técnico, na altura da quarta hora. Uma falha no eixo dianteiro fez com que os mecânicos trabalhassem febrilmente para que a falha fosse solucionada e o carro voltasse à disputa.

Na quinquagésima-sétima posição, àquela oportunidade a penúltima entre os 60 carros que largaram – e dois haviam abandonado.

A Toyota, que já nadava de braçada, chegou ao período noturno com a liderança e eventualmente o Porsche #1 de Neel Jani/Andre Lotterer/Nick Tandy incomodava e se revezava com um dos TS050 Hybrid na 2ª posição. Aí, as coisas começaram a dar errado para os japoneses.

O primeiro sinal de alerta foi o carro #8 com fumaça na altura da 9ª hora: o motor elétrico dianteiro entrou em parafuso e pegou fogo. Foi outro carro que perdeu imenso tempo com reparos, até porque a equipe vinha de duas vitórias no WEC com a trinca Sébastien Buemi/Anthony Davidson/Kazuki Nakajima – e Le Mans oferece pontos em dobro para o Mundial de Endurance.

A Toyota tinha o melhor carro em termos de velocidade e performance, dominando a disputa até a 10ª hora, quando problemas dizimaram os carros que lutavam pela ponta e mais uma vez deixaram os japoneses a ver navios nas 24 Horas de Le Mans (Foto: John Dagys/Sportscar365.com)

Na 10ª hora, o líder absoluto, o carro #7 de Kamui Kobayashi/Mike Conway/Stéphane Sarrazin, começou a vir muito lento e parou na pista com problemas de embreagem. O carro ficou travado em 1ª marcha e nem com o motor elétrico o “Kobazilla” conseguiu chegar aos boxes.

E o desastre se completou quando o #9 tomou um toque do Dallara LMP2 da Cetilar Villorba Corse e, em consequência do contato, houve primeiro uma saída de pista, um furo no pneu traseiro esquerdo, danos no carro e incêndio. Depois, o protótipo se apagou e Nicolas Lapierre, que dividia a pilotagem com Yuji Kunimoto e José María López, saiu da prova.

Parece que Sarthe e Toyota, pelo visto, não se completam. Os japoneses não sabem como ganhar essa prova e muita gente, nas redes sociais, resolveu fazer piada com o azar dos orientais, sugerindo novos itens para os protótipos desenvolvidos em Colônia, tais como: sal grosso, arruda, alfazema, trevo de quatro folhas e pé de coelho.

A Porsche, a partir de então, assumiu a liderança com seu protótipo #1 e muitos já davam como favas contadas o triunfo do Fuscão, já que a diferença para o 2º colocado – que era um LMP2 – já era superior a 10 voltas e chegaria a catorze no meio da manhã.

Mas Le Mans tem seus caprichos. Não é “cruel”, como dizem uns por aí. É para os fortes. E o carro #1 não foi: uma queda de pressão de óleo na entrada de Tertre Rouge, quando Andre Lotterer estava ao volante, foi a senha para o começo do fim da corrida para os germânicos.

De repente, surgiu galopando no horizonte uma zebra que atendia pelo nome de Jackie Chan DC Racing. É isso mesmo: a equipe do ator Jackie Chan em sociedade com o piloto David Cheng não só descontou a diferença até o anúncio do abandono oficial do Porsche, como também assumiu a liderança da prova na classificação geral, de forma tão inédita quanto inesperada.

Mas vocês lembram do Porsche que caiu para 57º?

Pois é: a recuperação de posições foi paulatina e na vigésima hora o carro já se encontrava em sexto. Em uma hora – e com o abandono do outro 919 Hybrid – subiu quatro degraus e era o 2º, a uma volta do #38 de Ho-Pin Tung/Thomas Laurent/Oliver Jarvis. Era questão de tempo para descontar a volta e iniciar a feroz escalada rumo à liderança. Também, com um ritmo nove segundos por volta superior ao LMP2 líder da prova, não havia como segurar o Porsche guiado por Timo Bernhard. Só se quebrasse…

A festa do trio do Porsche #2 no pódio só foi possível pelo trabalho e dedicação dos mecânicos, a quem os pilotos dedicaram a vitória em Le Mans neste fim de semana

Mas a quebra não veio e os alemães, após o trabalho árduo dos mecânicos nos boxes e a altíssima performance de seus pilotos na pista, venceram mais uma vez – a décima-nona – as 24 Horas de Le Mans. Um triunfo que os pilotos fizeram questão de dedicar e lembrar da retaguarda. Brendon Hartley, o novo nome na galeria de vitoriosos do mítico circuito, assegurou que se não fosse o trabalho dos rapazes da Porsche, eles jamais teriam vencido a corrida.

Se a histórica vitória, que seria uma zebra sem precedentes, não aconteceu, pelo menos a Jackie Chan DC Racing teve todos os motivos do mundo para comemorar: seus dois protótipos Oreca 07 foram ao pódio na classificação da LMP2, com a vitória em Sarthe e a 3ª posição do #37 de Alex Brundle/David Cheng/Tristan Gommendy.

A Vaillante Rebellion ocupou em grande parte da disputa a liderança da LMP2 com seus dois carros, mas acabou em 2º na categoria e em terceiro na geral. (Foto: José Mário Dias/Piquet Sports)

A 2ª posição da LMP2 e a terceira na geral, numa corrida atribulada, porém brilhante, ficou com a Vaillante Rebellion e o carro #13 conduzido por Nelsinho Piquet/David Heinemeier-Hänsson/Mathias Beche. A trinca chegou a ocupar de forma eventual a liderança da divisão, antes de ter primeiro problemas com a luz traseira do freio e a necessidade de uma parada posterior – e um pouco demorada – nos boxes, para reposição da peça inteiriça após o capô do motor.

Não obstante, Nelsinho ainda teve que pagar um pênalti quando recuperava para cima do compatriota André Negrão na briga pelo 2º posto na categoria e se envolveu num contato com um retardatário. Não foi o único e nem o último problema na reta final: os últimos pit stops ficaram mais longos e mais difíceis porque havia uma falha no motor de arranque e entrou em ação uma das ferramentas mais fundamentais de qualquer oficina: o martelo.

Celebração: um exultante Nelsinho Piquet conquista mais um resultado espetacular nas 24 Horas de Le Mans: 3º lugar geral – e com um protótipo da classe LMP2, o que só valoriza seu feito e dos companheiros de Vaillante Rebellion, David Heinemeier-Hänsson e Mathias Beche (Foto: José Mário Dias/Piquet Sports)

Apesar das dificuldades, louve-se o trabalho da Vaillante Rebellion, que desde o início do campeonato mostrou-se ligeiramente inferior a algumas outras equipes em termos de velocidade, mas os dois carros – enquanto não tiveram problemas – foram muito sólidos em Sarthe. Pena que Bruno Senna não pode conquistar um resultado à altura do esforço dele e dos companheiros Nicolas Prost e Julien Canal, fechando a disputa em 15º lugar na categoria.

Corrida espetacular do #35 da Signatech-Alpine e o brasileiro André Negrão estreou em Le Mans no dia em que fez 25 anos. Acabaram em 4º lugar, nocauteados por um problema de freios

Em sua estreia em Sarthe, André Negrão desempenhou também um excelente papel: o piloto da Signatech-Alpine Matmut guiou com correção e o time de Philippe Sinault confiou-lhe a responsabilidade de receber a bandeira quadriculada como prêmio por um belo trabalho. De fato, o jovem campineiro que completou 25 anos no sábado resistiu firme até que uma falha nos freios o fez sair da pista no fim de Les Hunaudières, na curva Mulsanne. O piloto levou o carro para os reparos no freio dianteiro e voltou à disputa para terminar em quinto na geral e quarto na LMP2.

Mas o novato mais badalado, em que pese toda a sua experiência pregressa de Fórmula 1 e 500 Milhas de Indianápolis só podia ser ele: Rubens Barrichello.

Celebrado: Rubens Barrichello foi o novato mais badalado pela mídia internacional em Sarthe e seu 14º lugar pouco importa perto de sua presença na corrida (Foto: John Dagys/Sportscar365.com)

Mesmo sem um equipamento competitivo – o Dallara P217 estava longe de ter a mesma performance dos Oreca e até de alguns Ligier – o experiente piloto de 45 anos parecia um menino que ganha de presente o brinquedo mais sonhado. O resultado final – 14º lugar geral – pode parecer decepcionante, mas podem apostar que o construtor italiano ganhou um referencial absurdo e uma expertise imensa na hora de afinar e ajustar um equipamento. Nisso, Rubens é mestre. Não à toa, ficou tanto tempo na Fórmula 1.

Se não foi campeão, não importa. O público brasileiro tem a mania de malhar o Barrichello, mas se esquecem do quão ele é confiável em termos de conservação de equipamento e principalmente o quanto ainda é rápido. Até ele se impressionou por ter alcançado 340 km/h no ponto de velocidade máxima do circuito de Le Mans. Uma prova inequívoca de que se pode ser feliz, mesmo perto dos 50. Senti uma empolgação nele que me faz imaginar que ele pode – e vai – voltar no ano que vem.

Excelente o 6º lugar conquistado pela United Autosports com a trinca Filipe Albuquerque/Will Owen/Hugo de Sadeleer com o Ligier JS P217 (Foto: John Dagys/Sportscar365.com)

Ressalto também aqui o trabalho fantástico feito pela United Autosports, que mesmo inferiorizada em termos de equipamento, conquistou um incrível 6º lugar na geral com a trinca liderada pelo português Filipe Albuquerque, com os novatos Hugo de Sadeleer e Will Owen dando conta do recado. Zak Brown, um dos sócios do time que disputa o ELMS, com certeza curtiu.

E o que foi o final cinematográfico da LMGTE-PRO, não é, leitores?

Loucura: entrou na memória o pega homérico entre Jonathan Adam e Jordan Taylor pela vitória na LMGTE-PRO. A Corvette queria a 11ª taça na prateleira. A Aston Martin, o primeiro triunfo em Sarthe pelo WEC. E no fim, deu Aston (Foto: John Dagys/Sportscar365.com)

Ainda tem quem diga que Endurance é chato. Pois a disputa das últimas voltas provou que nada disso é exato. Não existe chatice em automobilismo, desde que haja corrida de verdade e disputas idem. O que Aston Martin Racing e Corvette Racing protagonizaram hoje foi um dos momentos mais bonitos do esporte nos últimos anos. Luta titânica pela vitória na principal categoria de Grã-Turismo, uma lenha pra ninguém botar defeito.

O espírito de Le Mans: Jordan Taylor cruza a linha de chegada em “três rodas e meia” para terminar a prova em 3º lugar na LMGTE-PRO

O detalhe é que enquanto uma marca perseguia a décima-primeira vitória em Sarthe, a outra não tinha ainda sentido o gostinho do triunfo desde a introdução do WEC em 2012, pelo menos na LMGTE-PRO. E com uma ultrapassagem sensacional, sob o aplauso e os urros de um público recorde de 268,5 mil espectadores, Jonathan Adam deu o golpe final em Jordan Taylor e levou a primeira posição e a vitória para o time que é parceiro da Prodrive de David Richards.

Quanto à Corvette, um pneu furado fez o 2º lugar virar pó e Jordan, com valentia e em três rodas e meia, ainda conseguiu o pódio com a terceira posição na divisão.

Os rapazes da Aston Martin sorriem no pódio e comemoram a vitória na LMGTE-PRO. Daniel Serra (esquerda), fez um trabalho fantástico em sua estreia na prova

O carro que Adam levou à vitória teve também o veterano compatriota Darren Turner e o brasileiro Daniel Serra, que realizou também um excelente trabalho – inclusive com a melhor volta da prova na divisão (3’50″950) – e guiou por quatro “stints” para contribuir de forma fundamental para o histórico triunfo dos britânicos em Sarthe.

E Pipo Derani tem que ter muito orgulho do que conquistou ao lado de Harry Tincknell e Andy Priaulx. Os Ford GT EcoBoost da Chip Ganassi Racing não foram tão superiores e tampouco tão dominantes quanto o foram no ano passado, por conta do sempre polêmico Balance of Performance (BoP) dos Grã-Turismo. Mas o jovem brasileiro foi mais uma vez impecável e chegou em 2º lugar na classe, resultado que deixa o trio na liderança da classificação do FIA WEC com 74 pontos, onze à frente da trinca vencedora em Le Mans.

Tony Kanaan cumpriu muito bem a tarefa de substituir Sébastien Bourdais no carro #68 da Ganassi. Em ritmo de prova, sua melhor volta foi somente cinco milésimos pior que a de Dirk Müller, que tem muito mais horas de voo que o baiano em Le Mans, além de conhecer o carro desde a última temporada. Foi apenas a segunda prova de TK com o Ford GT EcoBoost e o 6º lugar na classe tem que ser comemorado – e que sirva de incentivo para um possível retorno no próximo ano.

A vitória na LMGTE-AM, a categoria menos badalada das 24 Horas de Le Mans, teve ex-piloto de Fórmula 1: Will Stevens, Dries Vanthoor e Rob Smith ganharam com alguma sobra a bordo da Ferrari da JMW Motorsport

Na LMGTE-AM, categoria dos bólidos fabricados até 2016 e com pilotos de graduação inferior mesclados com um profissional por carro, prevaleceram os times com o modelo Ferrari 488 GTE. Venceu a JMW Motorsport na estreia de seu carro novinho em folha, com o ex-Fórmula 1 Will Stevens e os estreantes Dries Vanthoor e Rob Smith realizando um belo trabalho, sem cometer nenhum erro ao longo de uma exigente disputa. O 2º lugar ficou com a Spirit of Race e a tripulação formada por Duncan Russell Cameron/Aaron Scott/Marco Cioci.

E a Scuderia Corsa, campeã da prova em 2016, voltou ao pódio de novo: ficou com o 3º lugar graças a Cooper MacNeil/Townsend Bell/Bill Sweedler. Favorito à vitória, o Aston Martin #98 de Mathias Lauda/Pedro Lamy/Paul Dalla Lana ficou em oitavo. Pelo menos o canadense não se envolveu em incidentes como nos dois últimos anos…

Já Fernando Rees fez o que pôde com o Corvette C7-R da Larbre Competition. Liderou após conquistar a pole position, mas o carro caiu diametralmente de rendimento com as entradas dos franceses Christian Philippon e Romain Brandela. Acabaram em último na divisão e entre os 49 (excelente índice técnico) entre os que receberam a quadriculada.

Louca, mágica, inesquecível, quente… essa edição das 24 Horas de Le Mans deixou o blogueiro de alma lavada (Foto: FIA WEC/Divulgação)

Mais uma 24 Horas de Le Mans se foi.

Com a loucura que tem que fazer parte da vida.

Com a magia que é a marca deste mito chamado Circuit de la Sarthe.

Viram o dia lindo que fez nas últimas 24 horas, lá e cá, pelo menos no Rio? Pois é.

Estou de alma lavada e enxaguada, parafraseando o impagável Odorico Paraguaçu de “O Bem-Amado!”.

O Fox Sports, mais uma vez, levou o melhor aos seus telespectadores. Como eu disse, entre lágrimas, num dos meus comentários finais, ninguém mais do que eu se dedicou, esforçou e batalhou para trazer ao público brasileiro uma corrida diferente daquilo tudo que vocês estão acostumados.

Transmitimos os treinos classificatórios – algo inédito no país. Ficamos mais de 10 horas ao vivo, fora os flashes. E eu seria leviano e idiota se não elogiasse também o empenho e o altíssimo astral do querido Hamilton Rodrigues, que comandou duas janelas de transmissão com maestria, além do Thiago Alves e do mestre Edgard Mello Filho, sempre uma aula, que comandaram uma parte da transmissão no Fox Sports 2. E, claro, o Felipe Motta, que dividiu comigo a transmissão dos treinos classificatórios de quinta-feira.

Cada dia aprendo mais trabalhando com esses caras. Não sou perfeito. Nem tenho a pretensão de ser. A transmissão não tem que ser feita apenas pensando nos “gato mestres”. Mas também nos iniciados, naqueles que temos que fazer gostar do bom automobilismo, do melhor automobilismo.

Viva Le Mans! Viva o Fox Sports!