A Mil por Hora
24 Horas de Le Mans

REDENÇÃO!

RIO DE JANEIRO (Desenterraram a caveira de burro em Colônia!) – Cedo ou tarde, uma hora iria acontecer. Depois de dezenove tentativas em 32 anos, com cinco vice-campeonatos, momentos cruéis de choro e tristeza, entremeados com enorme frustração, a escrita se quebrou. A Mazda já não está sozinha como uma marca japonesa a vencer as […]

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Histórico: foram 19 tentativas em 32 anos. E finalmente a Toyota chegou lá, correndo contra ela mesma e contra o imponderável de La Sarthe

RIO DE JANEIRO (Desenterraram a caveira de burro em Colônia!) – Cedo ou tarde, uma hora iria acontecer.

Depois de dezenove tentativas em 32 anos, com cinco vice-campeonatos, momentos cruéis de choro e tristeza, entremeados com enorme frustração, a escrita se quebrou.

A Mazda já não está sozinha como uma marca japonesa a vencer as 24 Horas de Le Mans. La Sarthe escolheu enfim a Toyota como o construtor a se consagrar em 2018. Também… depois de tanto bater na trave, de tanto investimento, tanto dinheiro gasto, os dividendos viriam.

Por natureza, os japoneses são um povo muito obstinado, sábio e objetivo. A obsessão deles pela perfeição é algo que beira o inacreditável. E perfeccionistas que são, queriam deixar sua marca na maior prova de Endurance do planeta.

Se a ordem de mr. Akio Toyoda foi de o carro de Fernando Alonso vencer em detrimento do outro protótipo TS050 Hybrid, isso não interessa. É uma discussão que soa banal, já que é sabido por todos que a preferência da Toyota será pela trinca formada pelo espanhol, por Sébastien Buemi e por Kazuki Nakajiima.

Ou vocês acham que na Audi e na Porsche não havia situações semelhantes nos últimos anos?

É fácil criticar também a vitória inédita dos japoneses porque praticamente correram entre si e, mais do que tudo, por conta do histórico pregresso, contra o imponderável que pega equipes e pilotos pelo contrapé. Como – citando outros exemplos de outras categorias do esporte a motor – se ninguém aplaudisse o domínio avassalador de Senna ou de Schumacher na Fórmula 1, o de Sébastien Loeb no Mundial de Rali e o de Valentino Rossi na MotoGP.

O choro porque Alonso chegou lá em Le Mans, meus caros, é livre.

Questionar os méritos da Toyota não interessa, muito menos a opção óbvia pelo carro #8 superar o outro bólido do time. Alonso fez sua parte de forma sensacional e Kazuki Nakajima foi fundamental para o triunfo deste fiim de semana

E o espanhol fez uma estreia perfeita nas 24h de Le Mans. Foi demolidor em seu turno na madrugada, o que levantou as tais suspeições de que havia um favorecimento ao carro #8. E o que mais deu pano pra manga foi o “problema” do carro #7, que estava na mesma volta e, dependendo de quem estava a bordo do carro, até mais rápido ou no mesmo ritmo.

Isso deu margem a ilações, a uma saraivada de críticas (dos insatisfeitos e dos haters de Fernando, talvez) e a duas penalizações com mínimo espaço de tempo, em que o carro #7 foi penalizado primeiro por irregularidade no fluxo de combustível e depois por ter estourado o número limite de voltas dos stints – já previsto pelo ACO e pela FIA.

Como disse o amigo Fred Sabino no twitter, com enorme propriedade, “pra chegar primeiro, é preciso chegar. O resto, é o resto”.

Sábias palavras, meu irmão. O reconhecimento chegou logo: nas redes sociais, a Fórmula 1 e a McLaren exaltaram – com razão – o feito de Fernando Alonso.

E como não citar Kazuki Nakajima, o homem mais rápido da classificação e que, num espaço de dois escassos anos, viveu a dor e a delícia deste esporte que tanto amamos?

Imagino a alegria dele, de Alonso e Buemi por fazer parte de um belo quadro da história do automobilismo. Nakajima junta-se a Masanori Sekiya e Seiji Ara como os pilotos japoneses campeões em La Sarthe.

E Don Fernando aumenta para três o número de pilotos de Fórmula 1 em atividade com o troféu de campeão da prova francesa na estante e com um belíssimo Rolex de caixa de aço escovado na coleção – além dele, Brendon Hartley e Nico Hülkenberg têm a glória suprema de triunfar em Le Mans.

A Rebellion chegou onde dava pra chegar e Bruno Senna conquistou o melhor resultado dele em todas as participações nas 24h de Le Mans

Quanto aos independentes, eles atingiram o máximo que dava pra atingir. Ritmo de prova sempre inferior aos Toyota, no barato uns quatro a cinco segundos por volta mais lentos. No fim da disputa, a diferença em quilômetros já era superior a 160 km. Em tempo, meia hora ou mais. Só se houvesse uma hecatombe semelhante à do ano passado para se suceder uma zebra do tamanho do Cometa Halley.

Como não aconteceu, veio mais um belo resultado para Thomas Laurent (esse guia), Gustavo Menezes e Mathias Beche, que foram pela primeira vez ao pódio em 2018 – em Spa, herdaram o 3º lugar com a desclassificação dos companheiros de equipe, que hoje salvaram a quarta colocação – que passa a ser o melhor resultado de Bruno Senna nas 24h de Le Mans.

“Tivemos um monte de pepinos, especialmente com relação ao sensor do sistema de embreagem. Fomos perdendo tempo a cada parada e isso complicou nossa corrida”, revelou Senna. Após duas punições na reta final da disputa, não houve como o brasileiro e os seus companheiros Neel Jani e Andre Lotterer duelarem com a trinca do #3. Restou fazer a melhor volta entre os não-oficiais, com o tempo de 3’20″024. 

Em relação às demais equipes, a SMP Racing teve desempenho razoável com o #17 até o acidente que tirou o bólido da pista e da prova. A cena de Matevos Isaakyan tentando chegar nos boxes remeteu a Satoshi Motoyama com o Delta Wing em 2012. E não deu em nada, como daquela outra ocasião. O #11 com o estreante Jenson Button teve sérios problemas num sensor, perdeu inúmeras voltas e vinha no ritmo “foda-se, é até quebrar”. E o motor AER Biturbo estourou mesmo.

DragonSpeed e ByKolles perderam seus carros em acidentes fortes. A Manor teve o mérito de chegar ao final com um dos Ginetta (sim, chegar ao fim das 24h de Le Mans, independente da posição, é um feito) e o carro #6 se entregou com problemas de eletrônica.

Consistência, confiabilidade e nenhum erro: os segredos da vitória – ainda que questionável por suspeições quanto ao reabastecimento do carro – da G-Drive com o trio Vergne/Pizzitola/Rusinov

Os LMP2 conseguiram alcançar um ótimo nível de confiabilidade e outra vez figuraram com destaque no resultado final, especialmente a G-Drive Racing – que no ano passado teve o sabor amargo do abandono prematuro, em completo contraste com o júbilo e a satisfação de uma vitória até aqui incontestável do trio Roman Rusinov/Jean-Éric Vergne/Andrea Pizzitola – colocada em suspeição porque chegaram notícias de que os reabastecimentos – que são por gravidade – foram demasiado rápidos, há quem diga que vários segundos inferiores em relação às outras equipes. Como ainda haverá a vistoria de praxe, o resultado é extra-oficial.

O que não tira o mérito do trio que fez uma corrida perfeita e não desmerece de forma alguma o espetacular 2º lugar na divisão conquistado pelo brasileiro André Negrão junto a Pierre Thiriet e Nico Lapierre. Pequenos erros foram minando a performance global da trinca, mas o resultado é digno de registro. Principalmente para o aniversariante do dia: aos 26 anos, André já tem um 3º e um 2º lugares no currículo em La Sarthe. É um piloto que “vestiu” o Endurance de uma forma tão surpreendente quanto bacana de se acompanhar.

Dois ótimos resultados em duas participações na LMP2: André Negrão conseguiu se encaixar no Endurance e vem mostrando muito serviço pela Signatech-Alpine

E houve luta pelo pódio até o final. E luta intensa: a Graff-SO24 não se entregou e ficou em 3º lugar na divisão com os pilotos Vincent Capillaire/Jonathan Hirsch/Tristan Gommendy. Digno de registro também o 5º posto da United Autosports (nono na geral) do carro #22 de Juan Pablo Montoya/Will Owen/Hugo de Sadeleer, com o colombiano de 42 anos alcançando o mesmo resultado final do tio Diego Montoya, em 1982.

A estreia de Felipe Nasr foi bastante atribulada. Seus companheiros de equipe cometeram vários erros e o carro, que já fora reconstruído após uma “panca” de respeito nos treinos classificatórios, foi prejudicado ao longo da corrida. O 13º lugar na LMP2 foi o que deu pra conseguir. Felipe, enquanto o equipamento permitiu e pôde mostrar o que vale, foi um dos melhores pilotos a bordo dos chassis Dallara – como era de se prever.

A Porsche, em seu 70º aniversário, mesmo ausente da divisão principal, na qual venceu as últimas três edições na geral com o consagrado 919 Hybrid, não fez por menos nas classes de Grã-Turismo. Faturou a LMGTE-PRO numa dobradinha histórica e a LMGTE-AM, com uma de suas equipes clientes, onde a maior vedete estava fora da pista.

Para alegria do patrão Patrick Dempsey, a equipe do galã hollywoodiano, em parceria com os alemães da Proton Competition, triunfou na LMGTE-AM

Pois é… a equipe Dempsey Racing-Proton realizou uma prova soberba com o carro #77 tripulado por Julien Andlauer/Christian Ried/Matt Campbell, para não deixar margem a nenhuma crítica. A partir do momento em que se apossaram da ponta na divisão dos pilotos de graduação inferior e com carros fabricados até 2017, não se deixaram pressionar por mais ninguém. De resto, a Spirit of Race conquistou um 2º lugar muito positivo após uma estreia complicada em Spa e a Keating Motorsports atravessou o Atlântico para fazer um bom papel e levar o último degrau do pódio.

Ah… e os pilotos oriundos da IMSA foram muito bem. Não falo só da trinca do #85 – o Porsche #99 de Patrick Long/Tim Pappas/Spencer Pumpelly conquistou um meritório quarto posto, deixando atrás deles a Ferrari que teve Jeff Segal e Cooper MacNeil, o Porsche onde competiu a bicampeã da classe GTD – a dinamarquesa Christina Nielsen – e também o carro que teve Patrick Lindsey e Jörg Bergmeister.

E se houve um construtor que certamente quererá esquecer esta edição das 24h de Le Mans é a Aston Martin: nenhum de seus LMGTE-AM chegou ao fim e os dois LMGTE-PRO, lentos demais, tinham que contar com quebras para avançar. O #95 ainda salvou a nona posição na LMGTE-PRO, mas levou cinco voltas do vencedor. E o #97 enfrentou sérios problemas e não foi além do décimo-terceiro posto.

O que mais dizer da LMGTE-PRO, que não o que já era esperado: que foi a melhor categoria do grid, a mais espetacular em número de participantes, a com o maior número de bons pilotos por metro quadrado e, especialmente, carros que você pode ver – em versões menos trabalhadas – nas ruas. E isso é o que conta: a identificação do público com as marcas. Os protótipos são espetaculares, mas os LMGTE conseguem sê-lo ainda mais.

Visual simpático e desempenho avassalador: o 911 RSR de Estre/Christensen/Vanthoor dominou de cabo a rabo na LMGTE-PRO e consagrou a pintura do corte de carne de porco vista em La Sarthe no ano de 1971

Portanto, o triunfo do “Pink Pig” – que muitos maldosamente apelidaram de “Peppa Pig” e chamaram também os pit stops de “Pig Stops” (esse trocadilho eu adorei!) – é digno de aplausos por um fator crucial. Há muito tempo um carro da categoria não tinha um domínio tão incontestável quanto o de Kévin Estre/Michael Christensen/Laurens Vanthoor neste fim de semana. Os pilotos foram simplesmente perfeitos, precisos, irretocáveis. Mas – justiça seja feita – as Slow Zones e os períodos de Safety Car foram úteis para a supremacia do carro cor de rosa.

E o “Rothmans” Porsche teve trabalho pra consolidar seu segundo lugar após a pole-canhão de Gianmaria Bruni. A Ford Chip Ganassi deu uma canseira daquelas com pelo menos dois de seus quatro carros e um deles, o de Tony Kanaan, chegou sólido ao final numa boa 4ª posição na classe e terceira para efeito de pontuação no FIA WEC, já que o Ford que chegou em 3º lugar com o trio formado por Sébastien Bourdais/Dirk Müller/Joey Hand, é da IMSA.

“Lenha” cinematográfica entre o Porsche “Rothmans” e dois dos Ford da Chip Ganassi: o pega entre os franceses Bourdais e Makowiecki valeu cada centavo de euro pago pelo ingresso

A Corvette conquistou um bom 5º lugar, dadas as dificuldades desde os treinos, naquela que pode ter sido a última corrida do C7-R em La Sarthe. Para a Ferrari, restou o consolo de saber que Daniel Serra e Pipo Derani são pilotos de altíssimo nível, que nada ficam a dever aos outros titulares da Casa di Maranello. Era até pro #52 do Pipo ter completado a prova mais bem colocado, porque mesmo depois do 15º posto na classe no grid, a trinca formada por Derani, Antonio Giovinazzi e Toni Vilander desceu uma ‘lenha’ pra ninguém botar defeito. Seguidas penalizações por excesso de velocidade nas Slow Zones prejudicaram os integrantes do #52, que ainda seria o 6º colocado.

Daniel Serra e seus parceiros fecharam em oitavo na LMGTE-PRO e quarto para efeito de pontuação no Mundial de Endurance. Não fosse o problema que reteve o carro quase 10 minutos nas garagens, já perto do final, e um top 5 era uma hipótese bastante plausível. Para Augusto Farfus, a pena de o curitibano ter sido o único brasileiro a desistir – não por culpa dele, e sim por um acidente sofrido por Alexander Sims.

A quarta posição deu a Tony Kanaan o melhor resultado de um brasileiro na LMGTE-PRO em 2018

Uma pena também por Antônio Félix da Costa, que cometeu – disparado – a melhor ultrapassagem de toda a corrida. Coisa linda… de cinema! Aliás, dissabor completo para nossos irmãos d’álem-mar, já que Pedro Lamy e Filipe Albuquerque também abandonaram, todos com companheiros vítimas de incidentes ao longo da disputa.

É… Le Mans 2018 demorou a chegar, a começar e já terminou. Como um piscar de olhos, um momento efêmero que, na ótica dos campeões e de quem vence o desafio de cruzar a linha de chegada, chega até a ter um quê de eternidade.

Tem jeito não… esse coração de 47 anos ainda se emociona. Porque Le Mans tem uma aura inexplicável, que só pisando naquele solo, só estando ali, para poder compreender e sentir.

Você não escapa de mim, Circuit de La Sarthe.

Nos vemos em breve. E espero viver pra ver Alonso triunfar ali novamente e também se tornar Tríplice Coroado da história do automobilismo mundial.