A Mil por Hora
24 Horas de Le Mans

24h de Le Mans 2016: nem Hollywood faria melhor

RIO DE JANEIRO – Parece que o Automobile Club de l’Ouest (ACO) adivinhou que as 24h de Le Mans teriam um desfecho digno de filme de Hollywood. Basta ver quais as celebridades estavam lá em Sarthe: Brad Pitt, na condição de “Starter” oficial, Jackie Chan, Keanu Reeves, Jason Statham e Patrick Dempsey, que além de […]

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Na hora certa, no lugar certo: às vezes o automobilismo não tem justiça. Às vezes o automobilismo é imponderável. A Porsche lutou. Não venceria em condições normais a prova. Mas venceu. E chegou ao 18º triunfo de sua história, ampliando o recorde da marca de Weissach em Sarthe

RIO DE JANEIRO – Parece que o Automobile Club de l’Ouest (ACO) adivinhou que as 24h de Le Mans teriam um desfecho digno de filme de Hollywood. Basta ver quais as celebridades estavam lá em Sarthe: Brad Pitt, na condição de “Starter” oficial, Jackie Chan, Keanu Reeves, Jason Statham e Patrick Dempsey, que além de ator é dono de equipe no FIA WEC. E foi com essa seleta plateia, além de um público espetacular espalhado pelos 13,629 km do circuito, que tivemos a chance de presenciar um dos desfechos de corrida mais incríveis dos últimos tempos.

Talvez tenhamos assistido ao final mais emocionante da história. Principalmente porque esse final foi assistido em 190 países, numa audiência estimada em 802 milhões de espectadores potenciais. Porque hoje existem televisão, streaming e redes sociais para amplificar o que se viu neste evento. É diferente de 1969, quando o Ford de Jackie Ickx/Jackie Oliver roubou na última volta a vitória da Porsche – que seria a primeira dos germânicos na corrida francesa. Há 47 anos, o que tínhamos? Fotos, revistas, quiçá um filme amador. E olhe lá. Não é um registro que mereça ser lembrado com tanta emoção, embora tenha muito significado.

O que aconteceu hoje nesta manhã brasileira e tarde em Le Mans derruba alguns mitos. O primeiro de que corrida de Endurance não tem emoção. Conversa fiada. A última volta é um épico do esporte. Participante das 24h de Le Mans desde 1985, com algumas interrupções nesse período e quatro vices (1992, 1994, 1999 e 2013), a Toyota se preparou para vencer em Le Mans e conquistar a segunda vitória de um construtor japonês, o que não acontecia havia 25 anos.

Amparado ao descer do carro após uma dramática última volta que durou 11 minutos – e custou o 2º lugar ao carro #5 da Toyota – Kazuki Nakajima mal tinha forças para acreditar no que lhe aconteceu nos últimos momentos das 24h de Le Mans (Foto: Getty Images/Grande Prêmio)

Mostraram força durante a corrida. Lideraram quase 90% do total de 384 voltas percorridas nas 24h de disputa. Mas aí entrou o imponderável. Diz o ditado que Le Mans é que escolhe quem vai vencer a corrida. Quando parecia que a pista tinha escolhido o Toyota TS050 Hybrid de Kazuki Nakajima/Anthony Davidson/Sébastien Buemi, ela tirou sua mão ou o pensamento sobre o carro #5. Faltava uma volta e meia pro final e o que se viu daí em diante foi de cortar o coração.

Marc Lieb, Neel Jani e Romain Dumas quase não podiam acreditar no que lhes aconteceu nas últimas voltas das 24h de Le Mans

Um puta contraste entre o choro frustrante de Hughes de Chaunac no box da equipe nipônica com a reação emocionada e inesperada do francês Romain Dumas. Boquiaberto, o experiente piloto não queria acreditar na sorte que lhe sorria e também a Marc Lieb e Neel Jani. Enquanto o Toyota se arrastava sem poder ir além da 4ª marcha, até parar na reta dos boxes (“I have no power”, afirmou Kazuki Nakajima pelo rádio para o box da equipe), em frente a uma multidão incrédula, o Porsche vinha célere. E com a tragédia que se seguiu, o 919 Hybrid #2 estava na hora certa e no momento certo para receber a quadriculada da vitória – a 18ª da história do construtor de Weissach.

Maioridade. Autoridade. Competência.

À Toyota, só restou chorar e engolir a frustração de ver não só o carro #5 ter problemas como também perder de forma fragorosa o 2º lugar conquistado no número de voltas – mas não no resultado.

Eu explico: o regulamento da prova prevê que, para se classificar, independentemente da categoria, os carros têm de atingir pelo menos 50% da distância percorrida pelo líder geral da prova quando esta completa 75% de sua duração  – ou seja, com três quartos de prova, 18 horas no total. E tem um outro item, que passou ao longe da nossa percepção pura e simples, mas está lá no artigo 10, inciso 15: nenhum carro pode levar mais de 6 minutos para completar a última volta. O Toyota levou onze. E mesmo com os problemas que enfrentava, Kazuki Nakajima jamais poderia parar seu carro na pista e esperar o #2 passar para cruzar a linha de chegada atrás dele. Vale o que está escrito. E além do choro, zero ponto para a trinca do #5. De doer o coração. De verdade.

Doeu tanto que nem houve festa do trio que liderou a prova em grande parte da disputa, do #6 de Stéphane Sarrazin/Mike Conway/Kamui Kobayashi, quando receberam o troféu pelo vice-campeonato da disputa. As caras amarradas demonstravam todo o desapontamento diante de um desfecho tão louco quanto inesperado.

As 24h de Le Mans foram o retrato do que se viu nas duas primeiras provas do WEC, multiplicadas por quatro. Quase todos os carros da classe LMP1 tiveram problemas. Poucos passaram batido. Os LMP1 não-oficiais tiveram mais dificuldade, o que aumenta o mérito do #12 da Rebellion Racing, que lutou até o fim e recebeu a quadriculada.

Sobrevivente: único LMP1 não-oficial a receber a quadriculada, o #12 da Rebellion Racing levou Nelsinho Piquet e parceiros ao pódio nas 24h de Le Mans

Com problemas crônicos de ignição e embreagem, o protótipo de Nelsinho Piquet/Nick Heidfeld/Nicolas Prost completou um total de 330 voltas para ser o único carro sem sistemas híbridos a terminar na classe principal. De quebra, ofertou ao trio 50 pontos pelo triunfo na prova entre os não-oficiais e mais 1 no WEC – o que faz de Nelsinho e parceiros os líderes no Mundial de Pilotos na classe LMP1 dos privados, com 86 pontos. Ele também iguala Jaime Melo e Thomas Erdos como mais um brasileiro a ganhar as 24h de Le Mans numa subcategoria.

Nelsinho, que participou da transmissão do Fox Sports, demonstrou interesse em ficar na equipe e disputar mais corridas do WEC. “Estamos conversando. Tenho compromissos que podem me impedir de disputar a maioria das demais corridas do campeonato, mas o interesse existe de ambas as partes. Vamos ver se conseguimos uma solução”, afirmou Piquet.

Driblando os problemas, a Audi viu o 3º lugar cair no colo do trio do #8. Lucas Di Grassi conquistou seu terceiro pódio em quatro participações nas 24h de Le Mans.

Com mais problemas do que costuma ter em Le Mans desde que estreou na pista de Sarthe em 1999, a Audi não foi páreo para as rivais. O #7 saiu de esquadro logo cedo com uma falha de turbo – que foi trocado. Mas o bólido que teve pela última vez a engenheira Leena Gade cuidando da estratégia ainda teria mais problemas e terminaria em 4º na geral – menos, é bom lembrar, que o #8 de Lucas Di Grassi/Loïc Duval/Oliver Jarvis, que foram presenteados com o pódio após a não classificação do Toyota #5 no resultado final. Foi o terceiro pódio do piloto em Sarthe – igualando a marca de Jaime Melo e Thomas Erdos.

Di Grassi foi o mais rápido piloto do time durante praticamente todo o evento. Mas por alguma razão que desconhecemos, não conseguiu virar em ritmo de corrida um tempo próximo dos 3’21″375 que cravara no Journée Test, enchendo a equipe de otimismo. A melhor volta dele foi 3’22″206 e Kamui Kobayashi foi o mais rápido da disputa – 3’21″445.

Na LMP2, praticamente não houve disputa pela vitória a partir do momento em que o Oreca 05 Nissan da Thiriet by TDS Racing saiu rodopiando na curva Mulsanne e bateu numa pilha de pneus. Os danos foram tão extensos que o bólido da equipe francesa saiu de cena e teve de abandonar. Não foi o único: o Alpine #35, com Nelson Panciatici a bordo, também ficou fora por acidente, assim como o #44 da Manor, que já estava atrasado quando acidentou-se.

Trinta e oito anos depois: Alpine no topo do pódio em Le Mans, agora na LMP2, com Stéphane Richelmi, Gustavo Menezes e Nicolas Lapierre

Ficou fácil para o trio mais equilibrado da categoria: o Alpine #36 de Stéphane Richelmi/Nicolas Lapierre/Gustavo Menezes foi soberano durante grande parte da disputa e a vitória foi questão de administração do equipamento e muita competência na pista. A lendária marca criada por Jean Rédélé chegou ao topo de um pódio em Le Mans após 38 anos – desde a vitória de Didier Pironi/Jean-Pierre Jaussaud, com um protótipo Alpine Renault Turbo.

A G-Drive Racing lutou com todas as forças que tinha, mas contentou-se com o 2º lugar, minimizando o prejuízo das provas anteriores do WEC. O trio René Rast/Will Stevens/Roman Rusinov mostrou constância e poderia ter terminado mais próximo dos vencedores não fosse um pênalti sofrido por fazer um reabastecimento com o motor do carro ligado – algo não permitido pelo regulamento. Os russos da SMP Racing mandaram muito bem: pódio e terceiro posto ao trio do #37 formado por Vitaly Petrov/Kyrill Ladygin/Victor Shaytar.

Méritos: a Michael Shank Racing estreou e terminou as 24h de Le Mans com o 9º lugar na classe LMP2. Belo trabalho de Oswaldo Negri, John Pew e Laurens Vanthoor. Este último mostrou pedigree de grande piloto de Endurance

Os brasileiros não chegaram perto do pódio, mas todos sobreviveram. Oswaldo Negri e seus colegas de Michael Shank Racing estão de parabéns: única equipe a disputar o IMSA Weather Tech SportsCar Championship a atravessar o Atlântico e levar toda sua estrutura para estrear em Le Mans, chegaram em 9º na LMP2 e 14º na geral, com um total de 345 voltas percorridas. Tantas equipes fazem investimentos vultosos e nunca terminam a prova. A MSR, de primeira, foi lá, encarou o desafio e mostrou potencial. Destaque para o excepcional desempenho de Laurens Vanthoor nos seus turnos de pilotagem.

Bruno Senna/Ricardo Gonzalez/Filipe Albuquerque superaram problemas iniciais que atrasaram o carro #43 da RGR Sport by Morand e recuperaram posições com dignidade e galhardia. Acabaram em 15º na geral e décimo na divisão – sexto entre as equipes que marcaram pontos no WEC. Pipo Derani também teve uma corrida bastante atribulada junto a seus parceiros Chris Cumming e Ryan Dalziel. Não obstante a falta de performance dos protótipos Ligier JS P2 frente aos Oreca 05, o carro #31 da Extreme Speed Motorsports ainda teve uma falha de diferencial que o atrasou demais. Acabaram com 297 voltas cumpridas, em 16º na categoria e oitavo entre os times do WEC. Mais oito pontinhos na conta…

A emoção de Chris Hoy ao completar a primeira 24h de Le Mans em sua carreira deveria servir de exemplo aos que dilapidaram o Autódromo de Jacarepaguá e não quiseram fazer automobilismo e olimpismo convivendo harmoniosamente na republiqueta de Bananas…

Uma imagem marcante foi a emoção de Chris Hoy ao terminar a corrida em 17º lugar na sua primeira participação nas 24h de Le Mans. Aos 40 anos, o medalhista olímpico por seis vezes no ciclismo, sem contar os 11 títulos mundiais que conquistou, CHOROU ao ver o Ligier Nissan #25 da Algarve Pro Racing receber a quadriculada.

Pois é, né gente? O olimpismo e o automobilismo podem (e devem) conviver em harmonia tal como acontece em Sochi, na Rússia, desde que não haja brasileiros no meio – principalmente gente sem escrúpulos e que só visa lucro pessoal. O Comitê Olímpico Brasileiro poderia – e deveria – ver essa foto. E refletir a grande cagada que foi contribuir para o assassinato do Autódromo de Jacarepaguá à guisa de “Parque Olímpico” e que será – como todo mundo sabe – entregue de mão beijada para a especulação imobiliária.

Na maioria do tempo, os adversários da Ford na LMGTE-PRO só viram os GT EcoBoost dessa forma da foto acima…

E o ACO recebeu, na LMGTE-PRO, o troco merecido pelo BoP inédito e de última hora: Ford e Ferrari deitaram e rolaram, com requintes de crueldade. As equipes que disputam a série IMSA na classe GTLM monopolizaram o pódio. A estreia do novo Ford GT EcoBoost – criado para homenagear os 50 anos da primeira vitória do GT40 – não poderia ter sido melhor. O carro #68 que largou na pole position com Dirk Müller/Joey Hand/Sébastien Bourdais andou o tempo todo na frente, revezou-se com o #69 da equipe Ford dos EUA e também com a Ferrari #82 da Risi Competizione pela liderança.

Após a corrida, houve um festival de protestos: a Risi tentou impugnar o triunfo ianque e a Ford fez o mesmo contra o time de Houston. Cada uma com um motivo: a Ferrari estava com uma das “luzes de liderança”, que funcionam nas laterais dos bólidos indicando as posições entre os três primeiros em cada classe – apagadas. O #82 teria que ter cumprido um time penalty. Não cumpriu: a Risi foi multada em € 5.000 e recebeu um acréscimo de tempo de 20 segundos.

Por seu turno, a equipe do carro vermelho queria que o #68 fosse punido por ter desrespeitado a velocidade numa das Slow Zones. Não obstante, falhou o sistema de sensores das rodas. Aí a Ford foi punida com acréscimo de tempo de 1’10”. Façam as contas: a diferença original era de 1’00″200. A Ford, se punida sozinha, perderia o título por nove segundos. Mas a Risi, como também recebeu uma sanção, não pode comemorar nada.

No fim das contas, deu o oval azul de Detroit na cabeça, com direito a lágrimas de Bourdais por vencer finalmente em casa depois de tantos anos de tentativas. E quando digo de casa, é porque ele é de casa MESMO: o piloto nasceu em Le Mans e a pista era seu parque de diversões. Aliás, sobre o francês, discordem ou não, vai minha opinião: ele foi escandalosamente sabotado e sacaneado na Fórmula 1.

Assim, entre as equipes do WEC, restou o 4º lugar e os pontos em dobro foram para… a Ford! O #66 de Olivier Pla/Stefan Mücke/Billy Johnson beneficiou-se de um furo de pneu no Aston Martin #95 de Darren Turner/Nicki Thiim/Marco Sørensen para levar os 50 pontos da vitória entre os carros inscritos no Mundial de Endurance. Fernando Rees e seus parceiros Richie Stanaway e Jonathan Adam fizeram o que lhes foi possível com um carro que esteve sempre longe de brigar na linha de frente: terminaram em 6º na categoria e 24º na geral, com 337 voltas percorridas. Em termos de Mundial de Endurance, foi bom: a trinca somou mais 30 pontos na classificação do campeonato entre os pilotos de Grã-Turismo.

Bill Sweedler/Townsend Bell/Jeff Segal levaram a melhor com a Ferrari da Scuderia Corsa na classe LMGTE-AM

Na classe LMGTE-AM, a Scuderia Corsa voltou ao pódio e desta vez, com estilo: o carro #62 de Jeff Segal/Bill Sweedler/Townsend Bell dominou as horas finais da divisão e faturou a prova sem nenhuma oposição, completando 331 voltas com pouco menos de 2’55” de vantagem para o #83 de François Perrodo/Rui Águas/Emmanuel Collard, que levaram os pontos da vitória em dobro na categoria, para o WEC.

O pódio teve ainda o #88 de David Heinemeier-Hänsson/Patrick Long/Khaled Al Qubaisi, da equipe Abu Dhabi Racing-Proton. A Clearwater Racing fez uma bela estreia em Le Mans, conquistando a quarta posição na classe, seguida pela Gulf Racing e a icônica (e pouco vista) pintura de seu Porsche 991 RSR. Christina Nielsen foi a única mulher a terminar – já que o carro de Inès Taittinger incendiou-se. A dinamarquesa e seus parceiros Mikkel Mac e Johnny Laursen chegaram na sexta posição.

Um pódio marcante: Fréderic Sausset, quadriamputado, realizou o sonho de disputar e completar as 24h de Le Mans. De emocionar qualquer coração empedernido!

Outro grande destaque – digno de nota e aplausos de pé – foi a participação do quadriamputado Fréderic Sausset num protótipo Morgan EVO Nissan LMP2. Sem nenhuma pretensão de desempenho, apenas de levar o carro ao final, o francês de 47 anos emocionou o mundo inteiro ao dividir o carro com Christophe Tinseau e Jean-Bernard Bouvet para terminar a prova. A posição final? Qual a importância, perto da lição de vida que aprendemos.

Mais uma, aliás.

Ah… mais duas coisas: você acha Endurance ruim? Enfadonha? Melhor rever seus conceitos…

E um recado ao Bernie Ecclestone, para finalizar. Tanto este senhor quis sabotar as 24h de Le Mans que o GP da Europa em Baku, no Azerbaijão (país de grande tradição no automobilismo – #SQN) foi uma merda. Um lixo de corrida, que rapidamente será esquecida.

Essa edição das 24h de Le Mans? Ah! Essa entrou para a memória e para a história. Duvido que alguém irá esquecê-la tão cedo. E eu tive o privilégio de estar ao lado do Hamilton Rodrigues e do Sergio Lago, trazendo para vocês esse momento inacreditável que foi o final da corrida neste domingo.