30 anos de Senna, parte XVI (final) – GP da Austrália

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Amistosão: a última corrida da primeira Era Turbo da Fórmula 1, iniciada pouco mais de uma década antes, terminaria com vitória de Alain Prost, num fecho quase de ouro para a McLaren, num ano onde tudo deu certo para a equipe de Ron Dennis

RIO DE JANEIRO – Com tudo definido na temporada de 1988, o GP da Austrália ficou com cara de pelada de fim de ano da firma. Um amistosão em alta velocidade, já que Senna era campeão de pilotos e a McLaren há muito vencera o campeonato dos Construtores. Restava saber se a equipe dirigida por Ron Dennis chegaria à sua 15ª vitória, beirando a perfeição num ano de domínio absoluto do modelo MP4/4 com motor Honda Turbo.

Por falar em Turbo, a etapa de encerramento era da despedida de um conceito inaugurado onze anos antes em 1977 pela Renault. Houve um momento em que todos os motores eram turbocomprimidos (isso aconteceu em 1986) e, por conta da escalada alarmante de custos, buscou-se a opção por um regulamento mais saudável e democrático. Isso possibilitou nos anos de transição a chegada de novas equipes e projetos ainda estavam por vir para 1989 e os anos seguintes.

Os treinos classificatórios foram marcados por um festival de rodadas. A exigente pista urbana de Adelaide castigava muito os freios e na busca dos melhores tempos, vários deles saíam do traçado. A SEP, uma das fornecedoras de peças para os carros de Fórmula 1, desenvolvia discos de carbono, mais resistentes e também com melhor resfriamento quando solicitados.

E com calor intenso durante as sessões oficiais, Ayrton Senna chegou à 13ª pole da temporada, oferecendo um recorde absoluto para a história da categoria – ele já quebrara o recorde que era partilhado por três pilotos: Ronnie Peterson (1973), Niki Lauda (1975) e Nelson Piquet (1984) conquistaram cada um nove poles no total. A marca do campeão mundial era daquelas bem difíceis de ser batidas…

Senna superou Prost por apenas 0″132 numa classificação muito disputada, enquanto Nigel Mansell despedia-se da Williams com o terceiro tempo, seguido por Gerhard Berger e Nelson Piquet, na última corrida da Lotus com os motores Honda – que seriam exclusivos da McLaren no ano seguinte. Na definição dos 26 lugares, sobraram Gabriele Tarquini, Bernd Schneider, Pierre-Henri Raphanel (que substituiu Yannick Dalmas) e Julian Bailey, além da Osella de Nicola Larini, que não passou da pré-classificação.

O tempo ficou encoberto no dia da corrida e Alain Prost dominou o treino de aquecimento, quatro horas antes da largada. Mesmo com problemas de caixa de câmbio, o francês queria acreditar na possibilidade de encerrar o campeonato com honra e chegar à sétima vitória na temporada.

Dada a largada, Senna não consegue uma boa partida e isso é suficiente para Prost assumir a liderança, seguido pelo campeão mundial e por Berger, que no pulo de saída deixa Mansell para trás, com Piquet em quinto. Na primeira volta, Piquet aproveita a força do motor Honda Turbo e despacha Mansell na longa reta Brabham.

Na parte de Wakefield, um pouco mais atrás, um enrosco entre Caffi e Alboreto manda o piloto da Ferrari para o muro. Termina de forma melancólica a relação entre “Il Marocchino” e a equipe italiana, para a qual fora na esperança de ser o ‘novo Alberto Ascari’, tendo até chegado perto da conquista do título em 1985 – e fracassado.

Prost trata de abrir vantagem. Ayrton, despreocupado, assiste de camarote às investidas de Berger, que passa o brasileiro. Endemoniado, o austríaco da Ferrari quer a liderança e vai ao encalço do líder. Em duas voltas muito rápidas, o piloto da Ferrari faz os giros mais velozes da disputa e fica a menos de dois segundos do francês da McLaren.

Na 14ª volta, a liderança muda de mãos: Berger ignora Prost e assume a primeira posição com uma manobra clássica aproveitando o vácuo e a longa reta Brabham. O piloto da McLaren não se preocupa. Sabe que o rival poderá enfrentar problemas de consumo de combustível e por isso não oferece nenhuma resistência.

Berger abre três segundos para Prost, enquanto Senna vem num solitário 3º lugar. Piquet resiste às Williams e vem em quarto, com Capelli em sétimo e Andrea de Cesaris em oitavo.

O rumo da corrida muda na 26ª volta. O líder tem pela frente dois retardatários: Stefano Modena com a EuroBrun e René Arnoux, com a Ligier, que faz a pior temporada de sua história. Enquanto Modena colabora com Berger, Arnoux complica a vida do líder. Os dois batem no hairpin do fim da reta Brabham. James Hunt, na época comentando para a emissora britânica BBC, qualifica o antigo rival de “estúpido”. O incidente acaba com a corrida do piloto da Ferrari, que punha uma volta inteira no veterano francês.

Sem muito esforço, Prost reassume a dianteira. Com 30 voltas, o líder tem cinco segundos de fente para Senna. Piquet é bem-sucedido ao manter Patrese e Mansell sob controle. A sexta posição é de Capelli, seguido por de Cesaris, Boutsen, Warwick e Caffi, que pouco depois abandona com falha de embreagem.

Metade da disputa: os dois pilotos da McLaren decidem brincar de gato e rato na tentativa de marcar a melhor volta da disputa. Alain faz 1’21″767 e Senna responde logo depois com 1’21″668. Mas o francês tem um carro ligeiramente melhor e a diferença torna a aumentar entre eles. Tanto que na 47ª volta, Prost faz 1’21″559 e estabelece uma margem de onze segundos.

Na disputa doméstica entre os companheiros de equipe – que já não o seriam no ano seguinte – Riccardo Patrese tenta se defender de Nigel Mansell e o resultado é que o italiano perde o controle de sua Williams Judd e roda. Nada grave: o motor não morre e o piloto volta à disputa.

Faltando 23 voltas para o final do GP da Austrália, Senna tem a quebra da 2ª marcha em sua McLaren, o que pode comprometer o consumo de combustível. Nisso, Prost já destruiu seu próprio recorde de volta, marcando 1’21″216. Piquet sustenta os ataques de Mansell, mesmo com o péssimo carro que dispunha – porém com a formidável potência do motor Honda, que não lhe permitia ser incomodado na longa reta Brabham.

Mansell castiga tanto sua Williams, que na 66ª volta, totalmente sem freios, acaba por rodar e bater na curva 13. Fim de prova para o valente Leão, encerrando de forma melancólica aquela que seria a primeira passagem dele pela equipe então sediada em Didcot.

Faltando 10 voltas, mesmo sem a segunda marcha, Senna ainda mostra do que é capaz. Faz uma volta em 1’22”, mas isso não é suficiente. Sua desvantagem já vai além de 30 segundos. Nessa altura, a classificação aponta Prost líder, seguido por Senna, Piquet, Patrese, de Cesaris e Boutsen. Os problemas começam: Streiff, 7º colocado, desiste com falha na ignição de sua AGS.

Logo depois, dois pilotos têm problemas de pane seca: a Lola-Larrousse de Philippe Alliot e a Ligier de Stefan Johansson também abandonam. Cruel mesmo foi Andrea de Cesaris perdendo um 5º lugar praticamente certo na 79ª volta. A gasolina de seu carro acabou na altura de Flinders Street e o italiano despediu-se da Rial de uma forma inglória.

Nada mais acontece e o espalhafatoso Glen Dix exibe a quadriculada da vitória a Alain Prost, que triunfa pela sétima vez no ano – 35ª da carreira. O francês cumpre a formalidade e confirma o vice-campeonato, mesmo tendo feito mais pontos brutos que Senna (105 a 94), perdendo nos descartes de três segundos lugares, o que lhe deixa a três pontos do campeão – 90 a 87.

Nelson Piquet volta ao pódio após 14 corridas, o que não acontecia desde o GP de San Marino – assim como uma “trifeta” dos motores Honda Turbo em sua corrida de despedida. Um pódio inclusive com enorme significado: estavam ali os donos de todos os títulos mundiais de Fórmula 1 de 1985 até então. Seria artigo de luxo os três juntos nas três primeiras posições pelos anos seguintes, aliás e a propósito…

Riccardo Patrese salvou um bom 4º posto, seguido por Thierry Boutsen e Ivan Capelli. Além deles, só mais um piloto cruzou a linha final: Pier Luigi Martini, 7º colocado com a Minardi, não tinha mais embreagem e o seu motor Cosworth DFZ, prestes a quebrar, estourou de vez na quadriculada.

Num pódio até certo ponto bem descontraído, dada a animosidade entre Senna e Piquet, o piloto da Lotus não hesitou em dar um banho de champagne no primeiro-ministro australiano Bob Hawke. Depois disto, foram os três para a sala de entrevistas e quem estaria com eles seria o tricampeão mundial de Fórmula 1 Jackie Stewart.

Com uma Coca-Cola nas mãos, Piquet solta um forte arroto e Stewart, com sua tradicional fleuma, inicia a entrevista com Prost. O francês fala da vitória em Adelaide. “A mecânica funcionou muito bem, mas algumas pequenas preocupações não me pouparam. A caixa (de câmbio) por exemplo. Como aconteceu com Senna hoje e muitas vezes nesta temporada. Eu também atingi um destroço na pista, o que danificou um pouco a minha asa dianteira. Tudo isso complicou minha tarefa, mas no geral tudo correu bem”, comentou o vitorioso.

Ayrton já tinha outros planos em mente. “A segunda marcha saltava durante a prova. Foi o mesmo problema que eu tive na classificação. Depois ela quebrou. Tive também a quebra da primeira e a terceira estava perto de quebrar. Corrida dura, mas as férias me esperam. Vou descansar, voltar pra casa. O título está aí e é indiscutível”, revelou a Reginaldo Leme.

Nelson Piquet estava contente com o pódio e até certo ponto otimista com relação a 1989 e o novo carro da Lotus, que seria obra do engenheiro Frank Dernie. “Com certeza o próximo ano será melhor do que este”, acreditava.

1988 foi o “ano McLaren” e também o “ano Senna”. Numa temporada de amplo domínio da organização de Ron Dennis, que contava com peças-chave feito Creighton Brown, o chefe de mecânicos Joaquín “Jo” Ramirez, além dos projetistas Steve Nichols e Gordon Murray, bem como os engenheiros Tim Wright e Richard West, todos compunham a equipe perfeita, o time a ser batido no futuro.

Também pudera: foram 15 poles e vitórias, 10 dobradinhas, 25 pódios de seus dois pilotos e 1003 voltas somando Prost e Senna no comando. Os únicos pilotos que, além dos dois, completaram alguns giros na frente foram Gerhard Berger (27 voltas) e Ivan Capelli, uma única vez. No total, a McLaren e os motores Honda completaram incríveis 4.622 km na primeira posição.

Uma página da história da Fórmula 1 estava escrita. E aqui encerro as postagens da série “30 anos de Senna”. Espero mesmo que todos vocês, leitores deste espaço, tenham gostado do trabalho que foi descrever, uma por uma, as 16 etapas de um campeonato inesquecível e que marcou para sempre a trajetória de Ayrton Senna da Silva.

Comentários

  • Mattar, sensacional o seu trabalho. Muito legal de ler e relembrar. Sem querer abusar, você poderia fazer o mesmo com outras temporadas! Um abraço.

    • Leandro, tudo bem? Pode procurar aqui as séries alusivas ao bicampeonato do Emerson em 2014 e ao bi do Piquet em 2013. Estão no mesmo nível dessas. Obrigado e abraços!

  • Somo-me às pessoas que, via ‘face’ ou aqui no blog, externaram cumprimentos e elogios pela série. Desde já, ansioso para o que você irá nos brindar em 2.020, posto a efeméride envolvendo os 30 anos do bicampeonato obtido pelo piloto da Marlboro/McLaren/Honda.
    Kind regards,

    Paulo McCoy

    PS: Sem querer ser repetitivo: na condição de admirador de Nelson Piquet, tive imensa decepção na temporada 1988; se ele tivesse o dobro de pódios seria um alento…

  • Grande série Mattar.
    Mas ao mesmo tempo me levou a pensar… Todo mundo reclama (já faz um tempo) que não temos disputa entre equipes na F1.. primeiro com a Ferrari, depois Red Bull, Mercedes… e exaltamos essa época dos anos 80, 90… eu incluso.
    Mas revendo alguns GPs e lendo essa série, era a mesma coisa! A única diferença é que os carros não eram tão dependentes assim da aerodinâmica, então conseguia andar um pouco mais colados e permitiam brigas mais ferrenhas. E os pilotos também não tinham tanta frescura… até quem andava mais atrás era mais arrojados que quase qualquer um do grid hoje!

  • Rodrigo Mattar, uau!

    Lendo o seus relatos corrida a corrida, me passa a sensação de ter visto todas elas, essa sua preocupação com o detalhe realmente me comove, não só aqui no blog, mas também nas transmissões, quando junta vc e o Edgard Melo Filho nas provas de Endurance, é um prato cheio, muitas histórias, detalhes, curiosidades, visão de quem está, ou esteve ‘in loco’. Parabéns pelo seu trabalho, sou fã do tipo de jornalismo que vc faz, e que venham mais, afinal, esses relatos da F1 de 1988 deixaram um gostinho de ‘queromais’! Sucesso!

  • “Espero mesmo que todos vocês, leitores deste espaço, tenham gostado do trabalho que foi descrever, uma por uma, as 16 etapas de um campeonato inesquecível e que marcou para sempre a trajetória de Ayrton Senna da Silva.”

    Caro Rodrigo, para não gostar, só se não souber ler. Parabéns mais uma vez pelo ótimo trabalho.

  • 30 anos!! Na infância e adolescência quando alguém dizia que a vida passa rápido eu não imaginava que era tanto assim…. As lembranças que tenho dessa época são vivas demais para tanto tempo.

  • Gostei demais de todos os capítulos dessa série inesquecível,apesar de ter nascido quatro anos mais tarde,em 1992.Como eu gostaria que o automobilismo como um todo fosse melhor do que aqueles bons tempos.

  • Antes de qualquer coisa, muito obrigado pelo trabalho e pela verdadeira viagem no tempo que você nos proporcionou.
    E a velha estranha sensação de que não tem como não ser saudosista.
    Queria poder fazer um evento dos pilotos de hoje com aquelas máquinas.
    PS – Tenho imenso respeito por Hamilton, Vettel, Ricciardo e companhia…

  • Parabéns, Mattar! A série ficou muito boa, toda muito bem escrita. Muito legal poder reler todo o campeonato, corrida a corrida. Assim como os amigos, ficarei no aguardo das próximas séries.

    Abraços

  • Mattar,

    Primeiramente parabéns pelo excelente trabalho. É fácil olhar o Wikipedia e saber onde cada um começou e terminou a corrida, mas esse nível de detalhes que você nos proporcionou foi espetacular. Li calmamente todos os parágrafos de cada corrida.

    Muito obrigado!