A Mil por Hora
Fórmula 1

Suzuka, 22 de outubro de 1989

RIO DE JANEIRO – Os anos 1980 foram os que me definiram como fã de automobilismo e principalmente de Fórmula 1. Já que não existia TV a cabo e as corridas só passavam nas emissoras abertas – que eram (e continuam sendo) poucas – naquele tempo, quem dava espaço ao esporte eram a Globo e […]

Guerra sem trincheiras: a temporada de 1989 abriu feridas inestancáveis por longos anos. Foi o campeonato em que a rivalidade Prost versus Senna atingiu contornos dramáticos. O GP do Japão é o espelho de uma guerra suja em que Alain tinha Jean-Marie Balestre como aliado. Uma vitória vil da política sobre o esporte

RIO DE JANEIRO – Os anos 1980 foram os que me definiram como fã de automobilismo e principalmente de Fórmula 1. Já que não existia TV a cabo e as corridas só passavam nas emissoras abertas – que eram (e continuam sendo) poucas – naquele tempo, quem dava espaço ao esporte eram a Globo e a Bandeirantes.

A Globo tinha o filé mignon que era a Fórmula 1, impulsionada pelos sucessos de Nelson Piquet e Ayrton Senna. Soube muito bem capitalizar isso em retorno e audiência.

E a época de vitórias e títulos entre 1987 e 1991 é um reflexo disso.

No meio de conquistas – quatro no total – há um ano e um campeonato emblemáticos: 1989, cuja decisão aconteceu em 22 de outubro, há exatos 30 anos.

Era mais um campeonato de domínio McLaren – não daquela forma absurda como vimos em 1988. Mas no primeiro ano dos motores aspirados após o retorno desse regulamento, a Honda era melhor que a concorrência e os carros da equipe de Ron Dennis eram igualmente superiores.

Não obstante, tinham dois dos melhores pilotos do mundo ali: Alain Prost e o então campeão Ayrton Senna.

O primeiro ano foi de rivalidade cordial. Mas o segundo…

O estopim para o ressentimento de Prost com o companheiro de box começou em Imola, no GP de San Marino. Segundo o francês, havia um acordo mútuo de quem assumisse a ponta não fosse atacado logo na primeira volta. Senna deu de ombros, venceu aquela corrida e deixou Prost a ver navios.

Ayrton faria Alain de gato e sapato várias vezes. Mônaco, México… as coisas não iam bem para o francês.

Que no entanto tinha um forte aliado nos bastidores. Jean-Marie Balestre.

O soturno agente duplo nos tempos do nazismo de Hitler, presidente da FISA, autor de trapaças e traquinagens, sorrateiro manipulador das decisões nos bastidores, não deixava barato quando se tratava de derrotar inimigos.

Senna e o dirigente tinham quizilas desde 1988, as escaramuças foram se acentuando e o esperto Prost viu que podia ter aquilo a seu favor, num ambiente de equipe que já lhe era hostil.

Quando fez três vitórias em quatro corridas – a saber, EUA, França e Inglaterra – aproveitou-se do fato do brasileiro não ter marcado um ponto sequer para solidificar uma vantagem até então inimaginável a seu favor.

Ayrton reagiu na Alemanha, numa corrida emocional em que soube da morte do empresário e amigo Armando Botelho – logo depois que a venceu. Foi derrotado por Mansell na Hungria e fez de Spa seu quintal de casa.

Naquela oportunidade, Alain Prost decidiu mudar de ares. Assinou com a Ferrari. Fez Ron Dennis saber da notícia – e o dirigente o poupou da inevitável demissão (já tinha assinado com Gerhard Berger). De pura sacanagem, quando venceu o GP da Itália e já era piloto de Maranello, Prost deu o troféu da vitória para a torcida.

O clima, vocês podiam imaginar, era péssimo. Faltando duas corridas para acabar o campeonato de 1989 – Japão e Austrália – Alain tinha 81 pontos brutos e 76 líquidos. Ayrton Senna, 60.

Todo ponto era ponto.

Só a vitória – ou melhor, as vitórias – interessavam a Senna.

O brasileiro fez a pole do GP do Japão com o tempo de 1’38″041. Uma luneta de 1″730 para Prost. Porém, o francês mexeu no acerto do carro. Mudou o ângulo da asa traseira para ganhar mais velocidade nas retas de Suzuka e nas saídas de curva.

Apesar de suspeitas jamais comprovadas de queima de largada, Prost partiu à frente de Senna. Ele tinha um acerto de asa traseira para manter-se à frente do brasileiro aproveitando a formidável potência do motor Honda nas retas e o torque e tração nas retomadas do circuito de Suzuka

Há quem diga que Prost queimou a largada e esse pode ter sido um dos fatores que contribuiu para que o francês, que normalmente não era exemplar nos arranques, largasse à frente de Senna.

Como falei no Fox Nitro desta segunda-feira, eram os dois e o resto. A corrida de exatos 30 anos atrás foi um voo solo dos dois. Ayrton só liderou por três voltas entre os giros 21 e 23 porque Prost fizera a troca de pneus. Quando Senna fez o mesmo, a ordem foi restabelecida e o brasileiro seguiu a caça ao francês.

Até antes do controverso choque, a corrida praticamente inteira mostrou Senna perseguindo Prost, num voo solo das duas McLaren – eram eles e o resto

Foram mais de 40 voltas de uma perseguição antológica. Até que Senna saiu mais lançado da curva 130 R, pegou a semi-reta que levava até a frenagem para a chicane e pensou: “É aqui que eu vou”.

Ao mesmo tempo, dentro do cockpit do McLaren gêmeo com o número #2, Prost certamente rilhava os dentes e imaginava.

“Mas não mesmo!”

E houve o contato. A batida que simbolizou um campeonato e sobretudo uma rivalidade.

O contexto era totalmente favorável a Prost. O francês, de caso pensado, deixou o carro engrenado na primeira marcha para dificultar que Senna retornasse à corrida.

“Os dois batem e assim o campeão é Prost” – disse Galvão Bueno na transmissão, se atentando para o fato do corte de chicane de Ayrton Senna.

À luz do regulamento, a manobra do brasileiro para regressar ao GP do Japão e tentar a vitória – que o manteria ainda com chances de título – não era permitida pelo regulamento. Mas o desenlace foi uma das maiores sacanagens já vistas na história do automobilismo.

Senna fez a parte que lhe cabia. Com o bico quebrado, parou nos boxes, voltou em segundo (a vantagem para o então 3º colocado, que era Alessandro Nannini, da Benetton, na hora do choque entre Alain e Ayrton era de quase uma volta inteira) e ainda cruzou a linha de chegada dois segundos e pouco à frente do italiano.

A seu modo, Balestre interveio, deliberou com os comissários, com o diretor de prova Roland Bruynseraede e veio a punição.

Não um acréscimo de tempo que deixaria Ayrton, na pior das hipóteses, em 4º lugar, mas a desclassificação sumária. Uma rapinagem bem ao jeito e ao estilo Balestre.

Prost não se importava. Tinha um aliado político muito forte. Estava cagando solenemente para o que pensavam Senna, Ron Dennis, Jo Ramirez e o chefe dos engenheiros da Honda, Osamu Goto – que na transmissão não escondia o sorriso pela recuperação e a vitória de Senna, cassada num andar qualquer da torre de controle de Suzuka.

Nannini venceu – de uma forma nada meritória. Ele não tinha nada a ver com aquela sujeira política. Pobre Nannini, cara simpático, bacana às pampas, rápido pra chuchu – um ano depois teria o braço decepado num acidente de helicóptero…

Incrível que Ron Dennis, mesmo com Prost – ainda defendendo suas corres – sendo campeão do mundo após este lamentável episódio, já que o brasileiro não teria mais condições de igualar os 76 pontos do francês – recorreu da decisão nos tribunais… contra o demissionário dono do 3º título mundial da carreira.

O tiro saiu pela culatra: o Tribunal da FIA agiu como uma espécie de Torquemada e sancionou Senna com suspensão de seis meses (com sursis) e multa de US$ 110 mil, bastante dinheiro na época (continua sendo). Ayrton teve que escrever uma carta à entidade para garantir a superlicença com vistas ao ano de 1990, quando a McLaren, no anúncio oficial da primeira lista de inscritos, apareceu com o piloto de testes Jonathan Palmer no carro #27 ao invés de Senna.

A rivalidade Senna versus Prost, a partir desse episódio, jamais seria a mesma. Mas um não sabia viver sem o outro dentro da pista.

E sabem por que?

Porque eram iguais na competitividade, no objetivo de derrotar um ao outro a qualquer preço – com ligeira vantagem para o brasileiro na determinação, enquanto Alain já não queria mais correr riscos, porém se expondo a eles em momentos cruciais.

No ano seguinte, a história seria diferente.

Muito diferente…