Discos eternos – Cruel (2005)

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RIO DE JANEIRO – Quis o destino, ora cruel, ora piedoso, que este excelente disco de Sérgio Sampaio fosse lançado onze anos depois da morte do cantor e compositor que, por força de sua vida desregrada, faleceu prematuramente aos 47 anos, em maio de 1994, vítima de pancreatite. Para aquele ano, estava previsto justamente o lançamento do que seria o quarto álbum de sua carreira, através do selo Baratos Afins, do lendário Luiz Calanca.

O capixaba que explodiu nos anos 70 com a clássica “Eu quero é botar meu bloco na rua” nunca teve seu trabalho compreendido e ganhou a alcunha de “Maldito”, que hoje cai muito bem em qualquer artista de MPB assim rotulado. Sérgio não foi o único: Jards Macalé, Luiz Melodia, Walter Franco e até Raul Seixas, seu amigo no início da carreira, produtor de seu disco lançado em 1973 e companheiro de hábitos e ideologia, também herdaram essa pecha.

Embora tenha lançado apenas três discos antes de sua morte, o artista tinha uma obra que, se não era registrada por ele, ganhou voz por vários artistas. Erasmo Carlos, por exemplo, gravaria “Feminino Coração de Deus”, nos anos 80. E muitas de suas canções inéditas apareceram no disco-tributo Balaio do Sampaio, lançado em 1998. Quem participou dessa coletânea foi um devotado fã: o maranhense Zeca Baleiro. E foi graças a ele que Cruel, o disco póstumo de Sérgio Sampaio, foi lançado há quase dez anos. Zeca, através do seu selo Saravá Discos, tratou das músicas que já estavam gravadas, remasterizou-as e refez alguns instrumentos em estúdio. O resultado é excelente.

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Na primeira audição, ficam evidentes as influências de Sérgio no estilo de Zeca Baleiro e também as de outros artistas contemporâneos na musicalidade do capixaba. Em alguns momentos, como na primeira faixa, “Em nome de Deus”, o cantor emula Luiz Melodia. As referências que impulsionaram a carreira de Sampaio também se fazem presentes, nos chorinhos e sambas que remetem à época em que, adolescente em Cachoeiro do Itapemirim, ouvia rádio apaixonadamente.

Uma das melhores músicas do disco é “Polícia Bandido Cachorro Dentista”, que é absolutamente pop e, nove anos depois de seu aparecimento, ainda soa atual.

Eu tenho medo de polícia, de bandido, de cachorro e de dentista
Porque polícia quando chega vai batendo em quem não tem nada com isso
Porque bandido quase sempre quando atira não acerta no que mira
Porque cachorro quando ataca pode às vezes atacar o seu amigo

Porque dentista policia minha boca como se fosse bandido
Porque bandido age sempre às escuras como se fosse cachorro
Porque cachorro não distingue o inimigo como se fosse polícia
Porque polícia bandideia minha boca como se fosse dentista

Dentista, dentista…

O CD póstumo ainda traz a belíssima “Rosa Púrpura de Cubatão”, que no álbum-tributo de 1998 fora revista de forma excepcional por João Bosco e “Pavio do Destino”, naquele disco cantada por Lenine. Mas é bom observar que a veia crítica de Sérgio Sampaio, mesmo duas décadas após a verdadeira explosão que foi sua aparição fulgurante no FIC de 1972, continua afiada e a crônica de conotação esquerdista em diversas das faixas de Cruel continua viva e cristalina, como nas referências nada veladas ao apoio da elite aos militares, na letra de “Roda Morta”, a única canção composta em parceria – com Sérgio Natureza, que foi o mais profícuo parceiro de Tunai – por sinal, irmão de João Bosco.

O triste nisso tudo é tudo isso
Quer dizer, tirando nada, só me resta o compromisso
Com os dentes cariados da alegria
Com o desgosto e a agonia da manada dos normais

O triste em tudo isso é isso tudo
A sordidez do conteúdo desses dias maquinais
E as máquinas cavando um poço fundo entre os braçais,
eu mesmo e o mundo dos salões coloniais

Colônias de abutres colunáveis
Gaviões bem sociáveis vomitando entre os cristais
E as cristas desses galos de brinquedo
Cuja covardia e medo dão ao sol um tom lilás

Eu vejo um mofo verde no meu fraque
E as moscas mortas no conhaque que eu herdei dos ancestrais
E as hordas de demônios quando eu durmo
Infestando o horror noturno dos meu sonhos infernais

Eu sei que quando acordo eu visto a cara falsa e infame
Como a tara do mais vil dentre os mortais
E morro quando adentro o gabinete
Onde o sócio o e o alcaguete não me deixam nunca em paz

O triste em tudo isso é que eu sei disso
Eu vivo disso e além disso
Eu quero sempre mais e mais

Ouça o disco na íntegra aqui abaixo.

Ficha técnica de Cruel
Selo: Saravá Discos
Remasterizado e remixado por Zeca Baleiro
Lançado em 2005
Tempo: 46’32”

Músicas:

1. Em Nome de Deus
2. Roda Morta [Reflexões de um Executivo] (Sérgio Sampaio/Sérgio Natureza)
3. Polícia Bandido Cachorro Dentista
4. Brasília
5. Magia Pura
6. Rosa Púrpura de Cubatão
7. Muito Além do Jardim
8. Real Beleza
9. Pavio do Destino
10. Quero Encontrar um Amor
11. Quem é do Amor
12. Cruel
13. Uma Quase Mulher
14. Maiúsculo

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