Equipes históricas – Tyrrell, parte XXX (final)

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A contratação de Ricardo Rosset, imposta pelo consórcio da British American Tobacco, desgostou Ken Tyrrell, que vendeu a equipe e decidiu aposentar-se antes do início do campeonato

RIO DE JANEIRO – Fadada a mais um ano de decepções, a Tyrrell terminara 1997 sem qualquer fornecedor exclusivo de motores, sem dinheiro e sem grandes patrocinadores. Com o futuro da equipe em risco, surgiu uma proposta tida como irrecusável que mudou os rumos de uma das escuderias mais tradicionais da Fórmula 1.

Pouco antes do início do inverno no Hemisfério Norte, em dezembro, a British American Tobacco (BAT), dona das marcas Lucky Strike e 555 e que tinha interesse de montar uma equipe tendo como principal piloto o campeão mundial de 1997, Jacques Villeneuve, adquiriu a Tyrrell pela negociação recorde de US$ 26 milhões à época. A mudança de nome aconteceria apenas em 1999: a BAT, que renomearia a escuderia como British American Racing (BAR), manteve o nome tradicional para que os fãs pudessem assistir à última temporada da história do “Tio” Ken como chefe de equipe.

Nisso, houve uma discordância decisiva para os rumos daquela temporada. Ken Tyrrell gostara do trabalho de Jos Verstappen a bordo de seus carros em 1997 e queria o holandês como primeiro piloto, ao lado do novo contratado, o estreante japonês Toranosuke Takagi. Mas Craig Pollock, como o representante do consórcio da BAT que comprara a equipe britânica, exigiu que o companheiro de Takagi fosse um piloto com dinheiro. Verstappen não tinha patrocínio e foi preterido pelo brasileiro Ricardo Rosset, que fizera um ano razoável na Arrows em 1996 (inclusive com Verstappen como companheiro de equipe) e tivera o dissabor de sequer competir em 1997 por conta da insolvência da Lola-Mastercard.

Diante desse panorama, desgostoso com os rumos de uma equipe em que não podia mandar ou opinar, “Tio” Ken pediu o boné e antecipou sua aposentadoria. Seu filho Bob Tyrrell foi junto e assim a Tyrrell apresentou-se para 1998 como uma equipe de novo comando, apenas como preparação para o que aconteceria em 1999, quando a BAR estrearia com chassis Reynard.

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O último carro da história da Tyrrell foi projetado por Mike Gascoyne e Ben Aghatangelou, com supervisão de Harvey Postlethwaite

O modelo 026, último da história da equipe, foi projetado – como os anteriores – por Mike Gascoyne e Ben Aghatangelou sob a dileta supervisão de Dr. Harvey Postlethwaite. Ao contrário do ano anterior, o carro receberia um motor V10, no caso o Ford JD Zetec-R, semelhante ao da Stewart Racing. Mas o grande desafio para aquele ano, no entanto, seria adaptar os pilotos e os carros à nova realidade quanto aos pneus: a FIA determinou o uso de compostos frisados com sulcos, diminuindo a área de contato com o solo como forma de tornar os bólidos menos velozes. Uma das muitas medidas impopulares para a Fórmula 1, mas que por incrível que pareça, resistiu por pelo menos uma década.

Takagi impressionou de saída: classificou-se em 13º para sua prova de estreia, no GP da Austrália, em Melbourne, enquanto Rosset alinhou em décimo-nono. O japonês bateu logo na segunda volta com Ralf Schumacher e Jan Magnussen. O brasileiro vinha em décimo-terceiro quando abandonou por quebra de câmbio. No Brasil, os dois abandonaram novamente. Takagi, por problemas de motor e Rosset por mais uma falha de câmbio em seu Tyrrell 026.

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Em ritmo de classificação, Takagi simplesmente destruiu a confiança de Ricardo Rosset no início do campeonato

No GP da Argentina, em Buenos Aires, os dois 026 ainda puderam usar as asas “X-Wings” que a FIA logo proibiria e que foram introduzidas pela equipe na temporada de 1997. Foi a primeira corrida em que os dois carros chegaram ao final em 10º e 12º lugares. Takagi foi de novo muito superior a Rosset nos treinos, classificando-se de novo em décimo-terceiro, 1″626 à frente do companheiro de equipe.

Em Imola, a diferença entre ambos foi ainda maior – 2″409, com Takagi em 15º e Rosset em último, superado até pelo jovem novato argentino Estebán Tuero, da Minardi. O destino dos dois foi o mesmo: abandono por quebra de motor. No GP da Espanha, em Barcelona, o chassi do 026 não rendeu simplesmente nada. Takagi ficou com o 21º tempo do grid a quase quatro segundos e meio da pole. Mas Rosset foi ainda pior, com o brasileiro ficando de fora da corrida por estourar os 107% do tempo máximo da pole position.

Completamente destruído psicologicamente pelo companheiro de equipe e sem ambiente dentro da equipe, Rosset sentia a animosidade vinda de todos os lados. A imprensa internacional o odiava. Basta citar um diálogo entre Murray Walker e Martin Brundle numa transmissão da BBC.

“Muitas pessoas questionam se Rosset é realmente um piloto à altura da F1”, disse Walker. “É um debate bastante curto”, rebateu Brundle.

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Desempenho sofrível em Monte-Carlo: Rosset tirou Villeneuve do sério, bateu sozinho nos Esses da Piscina e ficou de fora da corrida

A pá de cal veio em Monte-Carlo, no GP de Mônaco. Sem ritmo para acompanhar Takagi, Rosset tirou muitos pilotos do sério por conta de seu desempenho sofrível. Jacques Villeneuve foi um que quis tirar satisfações com o brasileiro, que acabou fracassando fragorosamente na tentativa de alinhar no grid. Após uma constrangedora rodada nos Esses da Piscina, o piloto da Tyrrell #20 acabou entalando seu carro num vão dos guard-rails daquele ponto da pista. É claro que ficou de fora da corrida: com o tempo de 1’25″737, falhou os 107% da pole por 0″353 e ainda foi batido por Takagi por 1″713.

O clima, que já era o pior possível, ficou mais pesado ainda quando, de sacanagem, um mecânico fez uma brincadeira de péssimo gosto com Rosset ao inverter as letras R e T do sobrenome do brasileiro, mudando o adesivo do scooter do piloto para “Tosser” (que, segundo o Google, é uma gíria para descrever os fanáticos pelo onanismo). Incrivelmente, após o fracasso de Mônaco, Rosset deu à equipe o melhor resultado em todo o campeonato na corrida seguinte, o GP do Canadá. Mesmo largando em último novamente, o brasileiro terminou a corrida em 8º lugar – e lembro que só os seis primeiros pontuavam. Takagi desistiu antes de completar a primeira volta, por quebra de embreagem.

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Jean-Christophe Boullion testou o Tyrrell 026 com motor Renault como preparação para a estreia da BAR em 1999

No segundo semestre, a British American Tobacco investiu num programa de testes usando o chassi do 026 adaptado com um motor Renault-Mecachrome V10. Sem confiar tanto em Rosset quanto em Takagi para os ensaios, Craig Pollock contratou Tom Kristensen e Jean-Christophe Boullion para ajudar a equipe a entender melhor o motor e ganhar quilometragem e informações para o projeto de 1999. Sem dinheiro para investir no carro, a Tyrrell era uma pálida sombra do início do ano e a partir da França, as coisas só pioraram.

Em Magny-Cours, Rosset conseguiu uma pequena vitória pessoal ao se classificar melhor que Takagi para um grid de largada pela primeira vez em 1998. Mas nenhum dos dois terminou aquela corrida, desistindo ambos por quebra de motor. No chuvoso GP da Inglaterra, em Silverstone, Takagi chegou em 9º e Rosset foi vítima de aquaplanagem, rodando perto da metade da disputa. No GP da Áustria, o brasileiro completou em décimo-segundo e o japonês, vítima do próprio entusiasmo, rodou no início da primeira volta. E na veloz pista da Alemanha, Rosset machucou-se durante os treinos e não pôde correr. Takagi largou de um 15º lugar bem razoável e completou na décima-terceira colocação.

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Fora por deficiência técnica na Hungria e por acidente na Bélgica: a temporada de Rosset não poderia ser pior

Na Hungria, novamente Rosset voltou a não se classificar, levando um pau de quase três segundos do japonês, que no entanto nada fez na corrida além de terminar em 14º lugar. Em Spa-Francorchamps, os dois foram levados de roldão no enorme acidente que aconteceu logo após a largada, sob chuva torrencial. Os dois chassis do 026 foram inteiramente destruídos e Rosset, sem prioridade alguma dentro da equipe, ficou de fora. Takagi relargou após o caos, mas acidentou-se de novo, desta vez na 10ª volta.

Em Monza, novamente Rosset conseguiu classificar-se no grid à frente de Takagi, mas na corrida o japonês foi bem melhor e chegou em nono, com o brasileiro em 12º. Foi a segunda vez que os dois terminaram juntos uma corrida na temporada. No GP de Luxemburgo, em Nürburgring, o brasileiro andou junto do companheiro de equipe até abandonar, por quebra de motor. Takagi foi o 16º e último a receber a quadriculada.

A última corrida da história da Tyrrell como equipe de Fórmula 1 foi o GP do Japão, no dia 1º de novembro de 1998. Foi também a despedida melancólica de Ricardo Rosset da categoria: levou 2″640 nos treinos classificatórios e ficou de fora da corrida. Tora Takagi classificou-se em 17º lugar e vinha em penúltimo entre 16 pilotos quando se envolveu num forte acidente com o argentino Estebán Tuero. Fim da linha para os dois.

Assim terminava, de maneira triste, a trajetória da Tyrrell Racing Organisation. Entre 1970 e 1998, foram 430 GPs disputados, com 23 vitórias, 14 pole positions, 20 recordes de volta em prova, 77 pódios, oito dobradinhas, 621 pontos somados, 1.493 voltas na liderança, 39.316 voltas percorridas e um título mundial de Construtores, em 1971.

O epílogo dessa história todo mundo sabe: da costela da Tyrrell, nasceu a British American Racing (BAR), para satisfazer o ego de Jacques Villeneuve. A equipe existiu entre 1999 e 2005, sem conquistar uma única vitória, embora tenha alcançado 15 pódios e o vice-campeonato do Mundial de Construtores em 2004.

A BAR, cujos motores já eram fornecidos pela Honda, foi absorvida pela montadora japonesa, na terceira passagem dos nipônicos pela Fórmula 1. Embora tenham voltado a vencer graças a Jenson Button, no GP da Hungria de 2006, a equipe durou pouco tempo – apenas três temporadas – desistindo da categoria após péssimas performances em 2007 e 2008. Ross Brawn comprou no sistema de “management buyout” o espólio da Honda, transformou a equipe em Brawn GP e, de forma surpreendente, não só foi campeão mundial de Construtores em 2009 como fez de Button campeão do mundo entre os Pilotos.

Mais surpreendente ainda foi a compra da Brawn GP pela Mercedes-Benz, que era sócia e parceira da McLaren. A marca da estrela de três pontas voltou ao status de equipe própria desde 1955 e hoje é a maior potência da Fórmula 1.

Comentários

  • Capitulo XXX!!
    “Cacete de Agulha!!”, como disse o mineirinho no YouTube.
    Acho que até você se surpreendeu, Rodrigo!
    E o fecho foi com chave de ouro, escancarando o fiasco que foi R(T)osset(r).
    Tio Ken ficou tão possesso que pediu o boné e voltou para a serraria, a dupla Walker+Brundle condensou em 2 frases. . .e o GP do Japão foi a cereja do bolo. . .
    Podias até pensar em publicar depois um livro, com todas essas “Equipes Históricas”, talento tens até de sobra!
    Então ficamos no aguardo da Ligier, oferecida “de bandeja” pelo próprio escriba quando do passamento do próprio. . .brincadeirinha, mereces um descanso!
    Abraço.
    Zé Maria

  • Das cinzas desta equipe icônica surgiu o que é hoje a maior força da F1 atual. Chega a ser irônico o destino. Sobre o Rosset, restam poucas dúvidas após aquela temporada saber o motivo de ele ser considero com folga o pior piloto brasileiro da história da F1.

  • Grande Mattar,

    Muito obrigado e parabéns pela série.

    O site Grandepremio e a Fox ganharam muito com sua competência, dedicação e paixão.

    Abrax do Tala.

  • Aguardando ansiosamente a série sobre a Ligier.
    As séries sobre a Copersucar e a Tyrrell foram simplesmente fantásticas, dava um livro ou uma revista.

    Eu sou de 1974, comecei a acompanhar corridas (pelo que eu me lembro) em 1982 (lembro até hoje da chamada da Globo com o a foto do Reginaldo Leme sobre um mapa indicando onde ele estava na Bélgica, informando sobre a morte do Villeneuve)
    e eu sempre gostei daquelas equipes médias pra fortes, e a que eu mais gostava era a Ligier, e os anos mais legais que eu vi deles foram 85 e 86, apesar do acidente do Laffitte

  • Rodrigo,

    Parabéns pelo final da Saga da Tyrrell. Foi demais !!

    Estaremos juntos acompanhando a Saga da Ligier, assim que ela começar.

    Parabéns mesmo pala competência e talento !

    Renan.

  • Parabéns pelo trabalho Rodrigo, muito prazeroso conhecer a história das equipes assim. São tantas, vai utilizar algum critério para falar delas ou irá falar de todas?

    Abraço.

  • E Ross Brawn declarou que, antes de começar a temporada de 2009, pensou em trazer de volta a marca Tyrrell. Já pensou se isso acontecesse?

    A história mostraria que teria sido uma medida fantástica e talvez hoje, ao invés de Mercedes Benz GP, tivéssemos a Mercedes-Tyrrell F1, num esquema bem parecido com o da associação BMW-Sauber.