Discos eternos: Clube da Esquina (1972)

SÃO PAULO –  Há cerca de meio século atrás, a música brasileira era tomada de assalto por uma turma das Minas Gerais – cujo nome mais proeminente era o mais mineiro dos cariocas – que revolucionou e influenciou toda uma geração posterior com suas poesias em forma de canção, a sonoridade híbrida que emulava Beatles e nos trouxe para a eternidade lendas da MPB.

Refiro-me ao Clube da Esquina, que surgiu no bairro belorizontino de Santa Teresa (ou Santé, como se fala hoje) no fim dos anos 1960 e atravessou todo esse tempo para mostrar o quanto a boa música pode e deve ser atemporal. E olha só o elenco de feras que foram envolvidas nessa proposta revolucionária: Beto Guedes, Márcio e Lô Borges, Toninho Horta, Fernando Brant, Wagner Tiso e, principalmente, Milton Nascimento.

E não só eles: o lendário grupo Som Imaginário, Alaíde Costa, O Terço, Boca Livre, Elis Regina, Gonzaguinha, Azymuth e os compositores Ronaldo Bastos e Tavito também foram influenciados ou se deixaram levar pela essência do Clube da Esquina.

Em 1972, Milton Nascimento já era um artista e músico consagrado, com quatro álbuns lançados e com projeção internacional. O FIC de 1967, onde o cantor e compositor alcançou o estrelato com “Travessia” deu ao Bituca, então com 29 anos, o devido reconhecimento de seu talento, alavancado também por Elis Regina – que o adorava.

O quinto disco da carreira de Milton é, possivelmente, o mais celebrado de sua discografia. Principalmente porque ele celebra do início ao fim toda a proposta do movimento do qual ele fazia parte. E é um trabalho excepcional. Para o meu gosto, um dos dez maiores LPs em língua portuguesa em todos os tempos.

Com pitadas de folk, música negra, jazz, blues, acordes e levadas de rock, ‘Clube da Esquina’ (lançado originalmente como álbum duplo nos velhos tempos dos bolachões de vinil) começa já pegando o ouvinte pela veia, colarinho, estômago – a escolha vai de encontro com a sensibilidade de quem se deixa levar pela emoção de ouvir a melodia e a poesia (cortesia de Márcio Borges) da genial “Tudo o que você podia ser”, precedida de outro clássico, “Cais”, fruto da parceria de Milton com Ronaldo Bastos.

E o desfile de canções lindas não para. Lô Borges, que lançaria naquele mesmo ano de 1972 o famoso ‘Disco do Tênis’, também como influência direta do Clube da Esquina, traz a imortal “O Trem Azul” e Beto Guedes, esteio de clássicos do Som Imaginário, grupo de acompanhamento de Milton até 1970 – e que alçaria voo para gravar excelentes discos mesclando Clube da Esquina e rock progressivo – divide com o Bituca a faixa “Saidas e Bandeiras Nº 1”, de Milton e Fernando Brant.

“Nuvem Cigana”, a quinta faixa, com certeza influenciou um grupo de poetas de bares e ruas do Rio de Janeiro, composto por Chacal, Bernardo Vilhena, Claufe Rodrigues e, pasmem, Pedro Bial – e Bernardo seria um consagrado letrista de canções de Ritchie e Lobão anos mais tarde.

Depois do ouvinte deixar o coração bater sem medo, o disco segue com a delícia do ritmo e do tempero que transcendeu idiomas e gerações com a maravilhosa “Cravo e Canela”. Pensa que acabou? Que nada… ‘Clube da Esquina’ traz uma porrada atrás da outra.

Acompanhado de um violão maravilhoso e de acordes idem, Milton traz “Dos Cruces”, de Carmelo Larrea, seguida da belíssima “Um Girassol da cor do seu cabelo” – a ‘cama’ ao piano é uma das coisas mais lindas do disco, uma faixa que emula Beatles pós-Rubber Soul e com arranjo do gigantesco Eumir Deodato.

Aliás, não só Eumir prestou serviços com seu enorme talento: Tavito tocou violão e guitarra em várias faixas; Wagner Tiso, órgão e piano; Toninho Horta, baixo e guitarra; Raul de Souza, trombone; Robertinho Silva, bateria e percussão; Luiz Alves, baixo elétrico e percussão; Nelson Angelo, guitarra, baixo e percussão; Rubinho, bateria e percussão. Que timaço! Uma autêntica seleção brasileira da música.

Outra vez acompanhado de seu violão e de uma vigorosa percussão, Milton toca o coração mais empedernido e mais americano com a espetacular “San Vicente”. E o desfile de obras-primas não acaba, pois Lô, Milton e Beto Guedes se alternam na genialidade, como Gerson-Pelé-Jairzinho-Tostão na Copa de 1970. Uma tabelinha de canções incríveis feito “Paisagem da janela”, “Um gosto de sol” e a eterna “Nada será como antes”, uma das mais regravadas daquele repertório.

Podem contar aí: das 21 faixas, doze a treze delas – fácil – são autênticos clássicos da música brasileira. Tem quem não concorde, tem quem não goste – aliás, a capa, foto de Cafi, gerou polêmica a posteriori.

Eu explico: era 1971 e Cafi (fotógrafo falecido em 2019) fez o registro dos dois meninos na imagem que abre esta resenha. Tonho e Cacau, meninos de cerca de sete a oito anos na época, foram fotografados na zona rural de Nova Friburgo, município da região serrana do Rio de Janeiro.  Muito tempo depois, os dois decidiram, juntos, processar a EMI-Odeon (hoje Universal), Milton Nascimento, Ronaldo Bastos, Lô Borges e a Editora Abril. “Eles venderam muito disco, mas sem a autorização de ninguém”, queixaram-se os reclamantes em 2020.

Paciência. Meio século depois, ‘Clube da Esquina’ segue um álbum fundamental, histórico e, sobretudo, de uma beleza poética, sonora, melódica e etérea, sublime.

Ficha técnica de Clube da Esquina
Selo: EMI-Odeon/Universal Music
Produção: Milton Miranda e Lindolpho Gaya
Gravado entre 1971 e 1972
Tempo: 64’22”

Músicas:

1. Tudo o que você podia ser (Lô Borges-Márcio Borges)
2. Cais (Milton Nascimento-Ronaldo Bastos)
3. O Trem Azul (Lô Borges-Ronaldo Bastos) [interpretada por Lô Borges]
4. Saídas e Bandeiras nº1 (Milton Nascimento-Fernando Brant) [com Beto Guedes]
5. Nuvem cigana (Lô Borges-Milton Nascimento)
6. Cravo e Canela (Milton Nascimento-Ronaldo Bastos [com Lô Borges]
7. Dos Cruces (Carmelo Larrea)
8. Um Girassol da cor do seu cabelo (Lô Borges-Márcio Borges) [interpretada por Lô Borges]
9. San Vicente (Milton Nascimento-Fernando Brant)
10. Estrelas (Lô Borges-Márcio Borges) [interpretada por Lô Borges]
11. Clube da Esquina nº2 (Milton Nascimento-Lô Borges-Márcio Borges)
12. Paisagem da Janela (Lô Borges-Fernando Brant) [interpretada por Lô Borges]
13. Me Deixa em Paz (Monsueto-Ayrton Amorim) [com Alaíde Costa]
14. Os Povos (Milton Nascimento-Márcio Borges)
15. Saídas e Bandeiras nº2 (Milton Nascimento-Fernando Brant) [com Beto Guedes]
16. Um gosto de sol (Milton Nascimento-Ronaldo Bastos)
17. Pelo amor de Deus (Milton Nascimento-Fernando Brant)
18. Lilia (Milton Nascimento)
19. Trem de doido (Lô Borges-Márcio Borges) [interpretada por Lô Borges]
20. Nada será como antes (Milton Nascimento-Ronaldo Bastos) [com Beto Guedes]
21. Ao que vai nascer (Milton Nascimento-Fernando Brant)

Comentários

  • Tenho esse LP autografado pelo Milton. Consegui isso em um show q ele fez em Araraquara no ano de 87 qdo estava em turnê com Encontros e Despedidas.
    Nasci em 69 e em um outono de 81 passei pela sala e ouvi a música Caçador de Mim q minha mãe escitava no LP homônimo.
    Foi paixão à primeira nota. Passei o resto da adolescência ouvindo tudo o q o MN havia feito antes e depois daquele disco. Posso dizer q aquele dia no distante outono de 81 mudou minha vida pois tive a chance de enriquecer meu repertório musical e cultural. Até pq como o seu próprio texto mostra… MN nunca está mal acompanhado.
    Grande Abraço.

  • Pra ser aquela perfeição de resenha, clamo o 14 Bis com seu Flávio Venturini, e Paulinho Pedra Azul, como influenciados pelo Clube da Esquina.