A Mil por Hora
24h de Le Mans

Inesquecível: Ferrari vence após 58 anos na edição do Centenário das 24 Horas de Le Mans

RIO DE JANEIRO - Nem todos os adjetivos do dicionário de verbetes da língua portuguesa serão capazes de definir o que foi a edição do Centenário das 24 Horas de Le Mans, sobre a qual escrevo apenas hoje, 13 de junho, ainda movido pela emoção - porque muitas fichas não caíram - mas também pela […]


RIO DE JANEIRO - Nem todos os adjetivos do dicionário de verbetes da língua portuguesa serão capazes de definir o que foi a edição do Centenário das 24 Horas de Le Mans, sobre a qual escrevo apenas hoje, 13 de junho, ainda movido pela emoção - porque muitas fichas não caíram - mas também pela razão.

Fico aqui me perguntando: quando uma corrida dessa magnitude teve, nos tempos modernos, cinco construtores oficiais de fábrica liderando? E com 35 trocas de liderança entre os Hypercars?

Quando o retorno de um construtor a La Sarthe foi tão aguardado quanto os de Peugeot, para os franceses e o da Ferrari, pelos tifosi do mundo inteiro?

Foram alguns dos ingredientes que fizeram a 91ª edição de um clássico do automobilismo mundial dar muito certo. Parecia roteiro de filme. Nem o melhor idealizador de enredos faria coisa melhor na vida.

No meu conceito, a edição de 2023 da disputa foi a mais incrível, aleatória e emocional em muitos sentidos, desde que acompanho a corrida mais detidamente, desde 1997 - passando pelas matérias em "Quatro Rodas" e "Auto Esporte".

Sorte nossa: após 50 anos fora na classe principal e sem vencer Le Mans desde 1965 (no ano anterior, aconteceu o último triunfo da equipe de fábrica), a Ferrari, respaldada pela competentíssima estrutura da AF Corse, conquistou um triunfo meritório. Não foi por sorte ou qualquer coisa parecida. Maranello foi competente desde o Test Day, fez a pole, bateu a Toyota com autoridade e subiu ao topo do pódio com Alessandro Pier Guidi/James Calado/Antonio Giovinazzi, após 342 voltas percorridas.

Havia uma expectativa de que, com um grid formado por 40 Esporte-Protótipos, a corrida seria a mais rápida de sempre. Mas houve fatores a atrapalhar: períodos de Safety Car que, se não superaram o recorde histórico de 5h20min em 2013, diminuíram o total que poderia bater as 397 voltas de 2010; afora a chuva. 

As trombas d'água embaralharam a disputa e, por incrível que pareça, dizimaram o grid em uma escala muito menor que a imaginada: só bateu e se retirou o carro #83 da Richard Mille-AF Corse, com Lilou Wadoux a bordo - coitada dela... dentre os que revezaram, e muitos sequer entraram, ela foi a que menos andou, escassos 3min45seg. Faz parte...

Aliás, a edição 2023 das 24 Horas de Le Mans apresentou um carmageddon daqueles para ninguém botar defeito. Com menos de 2h30min de prova, quatro LMGTE-AM foram destruídos em acidentes - alguns deles, bem esdrúxulos - e dois LMP2 também foram para o vinagre. Iriam muitos mais até o fim. Isso contribuiu muito para que só 40 carros do total de 62 completassem.

E sobre as embaralhadas da chuva, quando a disputa foi nivelada mais por baixo, a Peugeot surpreendeu e voltou ao topo da classificação em La Sarthe após 12 anos. A Cadillac, em busca do sonho para se tornar a segunda marca dos EUA a ganhar, também. A Porsche também teve seus momentos de brilho.

Se critiquei o BoP do FIA WEC em algum momento, não lembro...

A Toyota vendeu caro a derrota para a Ferrari e poderia ter sido mais difícil se o #7 não tivesse se envolvido numa panca com um LMGTE-AM - que quase capotou, aliás - e um LMP2, o da equipe de André Negrão, pouco antes de se completar um terço da disputa. O #8, que eventualmente liderou, teve problemas dos mais variados tipos, desde um sistema de freios que apresentou uma falha no fim, como outra que comprometeu a performance: o atropelamento de um esquilo afetou a performance do trio formado por Sébastien Buemi, Brendon Hartley e Ryo Hirakawa. Pobre bichinho...

Nos lados da Ferrari a vida não foi menos fácil: o #50 pole position perdeu tempo precioso por conta de um vazamento de óleo no sistema de freios e o carro perdeu oito voltas. O #51 chegou a perder a ponta porque o motor se recusou a pegar para a saída de box após um pit stop - e no último reabastecimento quase que o drama se repete. Mas Pier Guidi botou o carro para funcionar e deu tudo muito certo.

A horda de torcedores que invadiu o Circuit de La Sarthe presenciou um momento sublime, marcando o fim do domínio da Toyota após cinco edições, com a estreia e a vitória da 499P nas 24 Horas de Le Mans, marcando o fim de um longo jejum e do intervalo de meio século desde a última participação do Cavallino Rampante em Le Mans.

E foi tão bacana essa edição do evento que terminaram três construtores diferentes nos três primeiros postos, com o V-Series.R guiado por Alex Lynn/Richard Westbrook/Earl Bamber concluindo com o terceiro degrau do pódio, escudado pelo segundo carro do construtor estadunidense - da inscrição IMSA - e a segunda Ferrari.

Mérito para a Glickenhaus: sem ter um Hypercar híbrido, o sonhador James Glickenhaus viu seus dois SCG007 LMH completando em sexto e sétimo. Acabou por ser melhor que os demais carros que tiveram problemas e perderam terreno - os quatro Porsches, incluindo o da cliente Hertz Team Jota, os dois Peugeot e o Cadillac da Action Express, que perderia uma volta inteira após acidente com Jack Aitken. 

Assim, não foi desta vez que o Brasil chegou à vitória inédita em Le Mans, pois o Cadillac de Pipo Derani precisou ser consertado e terminou em 17º na geral e décimo entre os Hypercars. O Porsche de Felipe Nasr e parceiros, após liderar, desistiu com falha terminal de pressão de combustível.



Na LMP2, que fez sua última corrida como classe do FIA WEC em Le Mans - calma, a divisão segue em 2024 na corrida, mas não no campeonato... - a Inter Europol Competition também conquistou um triunfo daqueles alcançados por mérito e também com um domínio incrível a partir da quinta hora de disputa - liderando 204 voltas, sendo 112 consecutivas. Até aquele momento, houvera 15 trocas de liderança entre sete carros diferentes - inclusive a Jota de Pietro Fittipaldi e a Alpine, que tinha André Negrão.

Mas os problemas dos adversários, que foram ficando pelo caminho, deixaram a equipe comandada por Sacha Fassbender de bem com o lugar mais alto do pódio. Cool Racing e Duqueine Team também lideraram depois do predomínio da Inter Europol, mas a vitória sorriu para o #34 de Albert Costa/Kuba Smiechowski/Fabio Scherer.

Este último manquitolava nos últimos turnos, com dores no pé esquerdo que o faziam pular feito saci-pererê na hora das trocas. Pelo esforço hercúleo de todos, a vitória foi apenas fruto de um grande trabalho. Antes da premiação, a emoção tomou conta: Scherer desceu do Oreca 07 com as cores amarela e verde - e chorou copiosamente.

A vitória deixou o trio do #34 com 90 pontos na classificação e chances de título no ano derradeiro da LMP2 no WEC. Quatro unidades à frente está o #41 do Team WRT, mais uma vez no pódio com o 2º posto alcançado por Louis Déletraz/Robert Kubica/Rui Andrade. A Duqueine vendeu muito caro as posições que ocupou e foi o melhor dos times ELMS na briga. 

Por incrível que possa ser, as 24 Horas de Le Mans foram a melhor prova da Alpine na temporada. Lideraram pontualmente, é verdade, mas conseguiram chegar ao fim e o #36 foi terceiro para efeito de pontos do FIA WEC, enquanto a equipe de André Negrão foi sétima colocada dentro desse mesmo critério, marcando 12 pontos. André e mais Memo Rojas e Oli Caldwell subiram para 14º na tabela.

Pietro Fittipaldi, David Heinemeier-Hänsson e Oliver Rasmussen saíram entre os primeiros, a trinca do #28 liderou por 27 voltas, mas houve problemas especialmente quando Pietro foi fechado por um retardatário, rodou e atolou na brita. Após voltar, seguiu rápido. Mas o carro do time britânico teria problemas técnicos, fechando a disputa em 13º na divisão e 24º na geral. Para efeito de pontuação do WEC, ficaram com o nono posto e somaram quatro pontos - além da pole, claro.

As outras despedidas - porque são de verdade, mesmo - aconteceram na LMGTE-AM. É o último ano do regulamento no FIA WEC, já que ano que vem estreiam os LMGT3 e também é a despedida de todos esses modelos de Le Mans.



Assim, o Chevrolet Corvette C8.R, que chegou a perder duas voltas por conta de um amortecedor quebrado, não só recuperou como assumiu a dianteira após a 21ª hora, para não mais sair. O "Rexy" Porsche da Project 1-AO liderou mais voltas, mas o trio formado por Ben Keating/Nico Varrone/Nicky Catsburg foi, de novo, impecável.

Com a terceira vitória em quatro provas do FIA WEC este ano, o trio do #33 chegou a estupefaciantes 133 pontos contra 59 do trio que vem em 2º, da ORT by TF. Basta chegar ao fim nas 6h de Monza que o título será da trinca do carro amarelo estadunidense - e com muito mérito.

A classificação final, onde a Ferrari foi a maior perdedora - pelo menos na LMGTE-AM, podemos considerar que sim - apresentou três construtores no pódio, pois além da Corvette veio o Aston Martin Vantage AMR da ORT by TF e também o Porsche 911 RSR-19 da GR Racing, mais eficiente que o #85 das Iron Dames.

Registre-se que a LMGTE-AM teve seu menor índice de aproveitamento à chegada desde o início do regulamento técnico que se encerra neste ano de 2023. Foram somente nove dos 21 inscritos recebendo a bandeirada, sete marcando pontos pelo WEC. A maioria deles foi auto-eliminada ou eliminada em violentos acidentes, alguns deles bem constrangedores e outros, tristes - mas que acontecem - como o da Ferrari de Daniel Serra/Scott Huffaker/Takeshi Kimura, que chegou a liderar 52 voltas em três oportunidades - mas com Serra a bordo o #57 saiu da pista em Indianápolis pouco após a 20ª hora.



Também é digna de registro a participação do Camaro ZL1 da Nascar que impressionou todo mundo pela potência e velocidade, a despeito de problemas que fizeram a trinca formada por Mike Rockenfeller/Jenson Button/Jimmie Johnson terminar apenas na 39ª posição. O público presente e também ao longo de todas as atividades de pista urrava ao ouvir o ronco furioso da 'usina' 5,8 litros V8 do carro, despejando quase 700 CV de força.

Agora, para finalizar, algumas palavras sobre a semana que antecedeu esta edição das 24 Horas de Le Mans.

Para começo de conversa, um esclarecimento sobre eu não estar nas transmissões da Fórmula Indy: não tenho condições financeiras para pagar dívidas do CNPJ da empresa que tive de abrir para trabalhar nos canais Fox Sports e foram tantas as burocracias que tive de fazer uma renúncia e uma escolha.

E essa escolha foi natural.

Em março, quando ia começar a temporada 2023 do FIA WEC, recebo um telefonema do Sergio Milani, que meio sem jeito, tímido, queria propor uma contrapartida de ajuda para conseguir fazer a transmissão das 1000 Milhas de Sebring com ele e outros. Seria meio de afogadilho, a custo zero para mim, ele e todos os envolvidos. Ficamos 10h no ar no YouTube, driblando muitos problemas técnicos.

Mas os responsáveis pela parte de mídia da competição propuseram fazer de novo, com melhor estrutura, a etapa de Portimão. Nessa jornada, juntaram-se Aldo Luiz, um jovem narrador oriundo do Tocantins e o Felipe Meira, ambos de forma remota, este último, no Paraná. Foi melhor que a etapa anterior e aí veio a chance de fazer Spa-Francorchamps - e recebendo.

O retorno foi fantástico e o vídeo daquela corrida teve quase 300 mil visualizações.

Daí eu sabia e alertei ao Milani que Le Mans, a cereja do bolo, tem direitos à parte das demais provas do WEC. Em último caso, poderíamos fazer também por streaming mas não no canal do Mundial de Endurance. E o ACO fechou com o BandSports.

Foi uma ducha de água gelada. Chorei de frustração. Choramos todos. 

O Milani já tinha rascunhado escala, chamado várias pessoas - eu, inclusive - e a desmobilização começou. Mas após de um dia vem outro dia, foi o que ouvi de uma pessoa muito querida.

E aí aconteceu a surpresa: o povo do WEC elogiou nosso trabalho e sugestionou ao BandSports que a operação fosse tocada por eles, mas com a gente no ar, fazendo incríveis 26h de transmissão, incluindo pré e pós-corrida com todos os pódios. 

De uma hora pra outra, a equipe foi refeita e todo mundo, exceto o Sergio Lago, que fez de esquema remoto, no Rio, foi para São Paulo: eu e Milani viajamos do Rio, Felipe Meira do Paraná, Aldo Luiz do Tocantins, o André "Boina" Bonomini de Santa Catarina. Apenas a Deborah Almeida, o Gabriel Lima e o Geferson Kern estavam em São Paulo  além, óbvio, do Milton Pecegueiro Rubinho. Porra, logo de quem o "Tio" esqueceu... desculpa, "Fio".

E foram entradas em dois sites do Grupo Bandeirantes de Comunicação, dois canais no YouTube e mais três janelas no BandSports - fiz parte em duas, as duas últimas, além da abertura. Contei mais de 14h no ar, o que é superior ao que um piloto em Le Mans precisa guiar. Foram quatro narradores, seis comentaristas.

Ao fim de tudo, Ferrari recebendo a quadriculada, me veio tudo à cabeça e as lágrimas rolaram - acho que todos ficaram emocionados. Não tenho coração empedernido - e por que teria? Foi apenas a forma sincera de extravasar a tensão de uma semana inteira, recompensada por um trabalho incrível de todos nós. 

O público deu um retorno fantástico à minha participação e não sei como agradecer tantas palavras carinhosas e elogios que li nas redes sociais, do Instagram ao Facebook, do Twitter ao TikTok. 

Deixo ao Milani o agradecimento por me chamar pra acreditar nessa loucura na qual embarquei com o maior prazer e satisfação. Ao público por ter também ajudado a alavancar as vendas de "Le Mans e Suas Histórias", chegando perto dos números da primeira impressão de "Saudosas Pequenas".

E fico muito orgulhoso de ter participado dessa transmissão ao lado de um garoto promissor como o Aldo Luiz e de um camarada fantástico como o Sergio Lago, com quem não dividia uma corrida havia sete anos. 

Os Deuses de Le Mans vestiram vermelho. E estiveram do nosso lado. Que bom!

Que venha 2024, com o Brasil de volta ao calendário com as 6h de São Paulo exatamente após Le Mans - já pensaram ,que sensacional será? 

E que venha Monza, a próxima etapa deste campeonato!